Paulo Abrantes - Filosofia

História e Filosofia da ciência

Sou graduado em física (1970-73) e cheguei à filosofia por me ter deixado seduzir, quando ainda jovem, por questões conceituais naquela área. Um pouco mais tarde, somou-se a isso uma preocupação com o modo como as ciências são ensinadas.

Nos anos em que lecionei física no ensino médio, comecei a alimentar a ideia de que se deveria tentar explicitar, comparar e criticar as diversas imagens de ciência[1] veiculadas, em geral de forma sub-reptícia, pelos manuais, e que condicionam os objetivos e os métodos de ensino empregados pelos professores[2]. Isso antecedeu, em vários anos, a minha leitura de T. Kuhn que, como se sabe, manifesta uma preocupação análoga na ‘Introdução’ do seu livro A estrutura das revoluções científicas. Achava eu que o emprego, no ensino de ciências, de estudos de caso em história da ciência, ou mesmo de discussões em filosofia da ciência, poderia contribuir para uma crítica de tais imagens. 

Com esse espírito elaborei, em 1975, um projeto de pesquisa visando a utilizar a história e a filosofia da ciência no ensino de ciências (particularmente, no ensino da teoria da relatividade restrita) com o qual ganhei uma bolsa do governo francês. À época, eu era professor de física no ensino médio, em uma escola pública da periferia de Brasília, na então chamada Fundação Educacional do Distrito Federal.

Na França, fiz um mestrado (maîtrise) com o Prof. Jacques Merleau-Ponty, então no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris X (Nanterre), que havia recomendado o meu projeto para a concessão da bolsa. O Prof. Jacques Merleau-Ponty, falecido em 2002, era conhecido por seus trabalhos em história da cosmologia e em epistemologia. Embora em um dos capítulos da minha dissertação, defendida em 1978, faça propostas concretas para o ensino da teoria da relatividade restrita, dedico grande parte dela a uma discussão da filosofia da ciência de Popper, e ao confronto desta filosofia com o historicismo kuhniano. Também analiso, na dissertação, como os trabalhos de Feyerabend e de Lakatos, entre outros, refletem e desenvolvem os pontos principais do embate entre Popper e Kuhn.

Lakatos viria a exercer uma grande, e duradoura, influência sobre as minhas escolhas e orientações de pesquisa: a sua ‘metodologia de programas de pesquisa científica’ pareceu-me um avanço com respeito às metodologias falseacionistas articuladas anteriormente. Admirei, também, a sofisticação das suas análises sobre as relações entre história e filosofia da ciência, embora pressuponham um racionalismo exacerbado em detrimento dos caminhos efetivos do trabalho científico, o que veio a me incomodar posteriormente.

A noção lakatosiana de ‘programa de pesquisa científica’ é, sem dúvida, uma grande contribuição para melhor compreendermos o trabalho científico; mas não é aceitável ver o trabalho do historiador da ciência como o de propor uma reconstrução racional do passado, relegando para um segundo plano, como meras anomalias, os supostos desvios cometidos pelo cientista com respeito aos padrões de racionalidade estipulados pelo filósofo. L. Laudan tem uma concepção mais adequada, no meu entendimento, do objeto da pesquisa historiográfica, ao menos para um historiador que seja sensível à dimensão filosófica da atividade científica, como indicarei adiante.  

A primeira palestra que dei no Brasil, quando ainda era estudante de pós-graduação, foi em 1978 no Departamento de Filosofia da UnB, com o título “História e Filosofia da Ciência em Lakatos”.

Desde essa época, acompanhei de perto as discussões, brevemente aventadas acima, envolvendo a metodologia da pesquisa historiográfica, e interessei-me pela interdependência entre a pesquisa empírica- que é a do historiador da ciência, com seus objetivos tanto descritivos quanto explicativos-, e a perspectiva predominantemente normativa do filósofo da ciência. A minha preocupação com a metodologia do trabalho historiográfico (não somente o que toma a ciência como seu objeto, mas também a própria filosofia) foi muito aguçada nesse período, e se manteve desde então.

Voltando ao trabalho que resultou na minha dissertação de mestrado, o contato que tive com as ideias de Kuhn, no final dos anos 1970, foi também determinante para o curso que tomaria a minha pesquisa de doutoramento. Já me sentia desconfortável, à época, com as idealizações a respeito da ciência concebidas pelos filósofos, e busquei maior contato com a pesquisa científica real, em seu desenrolar histórico, o que me tornou mais receptivo aos historicistas e me distanciou dos popperianos (e, mesmo, das reconstruções racionais da história da ciência que Lakatos pregava, e que tanto me haviam estimulado). A filosofia da ciência dos empiristas lógicos, de caráter predominantemente a-histórico, também me pareceu limitada para compreender a atividade científica.

A perspectiva de estudar as condições históricas e os pressupostos filosóficos que constituíram o pano de fundo da proposta revolucionária da teoria da relatividade por Einstein, atraía-me desde a época de estudante de física na Universidade de Brasília. Tendo em vista atender às exigências para a obtenção do Diplôme d’Études Approfondies (DEA), que correspondia ao primeiro ano do doutorado (de troisième cycle) francês, tive a oportunidade de escrever uma dissertação sobre ‘as teorias do éter no séc. XIX e a emergência da teoria da relatividade’.

Defendi a minha dissertação de DEA e retornei, imediatamente, ao Brasil pois a minha bolsa de estudos do governo francês havia expirado. Fui admitido na pós-graduação em filosofia da Universidade de Campinas (UNICAMP) em 1980, e passei a cursar as disciplinas exigidas. O Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) era, à época, o lugar mais ativo no Brasil nas áreas de meu interesse. Marcaram-me, de modo particular, os cursos que fiz com o saudoso Prof. Gérard Lebrun, pela sua sutileza e rigor enquanto historiador da filosofia. Lembro-me que assisti ao seu curso sobre a história do positivismo, e a outro, sobre Kant e Hume.[3] A meticulosidade do seu trabalho como historiador das ideias influenciou, certamente, o que eu faria no futuro, voltado para a história das ideias científicas.

Embora tivesse obtido todos os créditos exigidos, não concluí a pós-graduação em filosofia na UNICAMP pois lá não havia, naquela época, quem pudesse me orientar na área de história da ciência. O apoio do Prof. Oswaldo Porchat foi crucial para que eu pudesse retomar o meu doutorado na França, agora com o apoio do CNPq.

O período em que permaneci na UNICAMP foi muito importante, não só para a minha formação mas também por ter propiciado minha inserção na comunidade filosófica brasileira (até então, os meus contatos no Brasil se restringiam à comunidade de físicos e de educadores). Vários dos colegas que faziam comigo a pós-graduação no CLE tornaram-se destacados professores em universidades brasileiras, e desempenharam um papel institucional relevante para o crescimento que teve aa filosofia brasileira desde então.

Regressei à França no segundo semestre de 1981. O doutoramento marcou o meu total envolvimento com a pesquisa historiográfica, com tudo o que isso implica no tocante ao manejo das fontes primárias sobre as quais me debrucei durante anos, sobretudo na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca da Sorbonne.[4]

A leitura do clássico de Pierre Duhem, La Théorie Physique: son objet, sa structure, que acabara de ser republicado na França em sua terceira edição– após esse filósofo ter sido, praticamente, esquecido naquele país por décadas-, sugeriu-me o problema central da minha pesquisa. Duhem, como é sabido, foi um duro crítico do uso de modelos mecânicos no que ele denominava, com algum sarcasmo, a ‘física inglesa’. J. C. Maxwell era o seu principal alvo. Tive, então, a ideia de estudar a recepção na França das teorias do físico escocês. Iniciei, a partir daí, um estudo da transmissão de ciência entre comunidades que, eu viria a comprovar com a pesquisa, assumiam diferentes imagens de ciência (métodos, valores cognitivos, etc.) e, mesmo, diferentes imagens de natureza.[5]

O choque das imagens que prevaleciam em cada uma das comunidades explicaria- essa era a minha hipótese de trabalho- a resistência às teorias de Maxwell e o atraso da sua recepção no continente europeu, em especial na França. A defesa da minha tese de doutorado em filosofia foi em 1985, no prédio histórico da Sorbonne.

Voltei ao Brasil logo após a defesa e me vinculei, no segundo semestre de 1985, ao Departamento de Filosofia da PUCRJ, com uma bolsa de recém-doutor do CNPq. Lá permaneci até 1986, quando fui convidado pela UnB para atuar como professor visitante. Além do meu trabalho como docente, organizei no Rio de Janeiro vários encontros de história da ciência reunindo pesquisadores de diferentes instituições que trabalhavam nessa área, mas de forma isolada. Naquele ano dei palestras em várias instituições sobre tópicos que abordo na minha tese: no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Departamento de Física da USP, na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Federal Fluminense. 

A pesquisa que havia realizado no doutorado está na origem de um dos meus principais pontos de interesse em filosofia (geral) da ciência: o emprego de modelos e de analogias na construção das teorias científicas. O trabalho de Maxwell é, sem dúvida, muito rico nesse tocante. Depois foi ficando claro que o que me instigava era algo mais geral: os métodos envolvidos na descoberta científica.

O historiador da ciência é um pesquisador voltado, evidentemente, para a descoberta científica- para os caminhos da imaginação científica (expressão usada por G. Holton). Contudo, o filósofo contemporâneo da ciência, particularmente aquele formado na tradição do empirismo lógico, considera essa temática completamente estranha à sua área. Esta é uma das heranças da famigerada clivagem entre os chamados ‘contexto de descoberta’ e ‘contexto de justificação’. O meu trabalho como historiador impediu que eu assumisse acriticamente, como filósofo, o que era então um autêntico dogma da filosofia da ciência de tradição anglo-saxônica.

Aproveito para ressaltar o contraste entre uma postura a-histórica, e aquela pregada pela tradição francesa da épistémologie historique (ou, equivalentemente, da histoire épistémologique). Tive muito contato, à época, com os trabalhos de G. Bachelard e de G. Canguilhem, e perguntei-me sobre as origens dessa tradição epistemológica em A. Comte e, posteriormente, nos trabalhos de E. Meyerson, L. Brunschvicg e outros. Não posso deixar, também, de mencionar o profundo impacto que os trabalhos do historiador A. Koyré tiveram sobre mim. Investigo essa tradição de uma história epistemológica e a comparo com a de cepa anglo-saxônica em um artigo de 2002, ao qual voltarei a seguir.

Hoje situo as raízes da minha postura naturalista em filosofia (neste caso, em epistemologia) no trabalho que desenvolvi como historiador: passei a considerar a história da ciência como imprescindível para o trabalho do filósofo da ciência (já que possibilita criticar os seus ideais de ciência). Uma postura naturalista em filosofia da ciência permite, além disso, maior abertura para o estudo da descoberta científica e solapa, em última instância, a dicotomia entre os dois ‘contextos’ a que me referi acima.

Não é menos verdadeiro, e igualmente digno de nota, que essa formação em filosofia da ciência marcou o meu estilo como historiador da ciência. Defendo que uma historiografia da ciência que não seja motivada e orientada por preocupações filosóficas tem escassa relevância (se alguma) para filósofos. É inegável, além do mais, que em muitos períodos não faz sentido distinguir, de forma nítida, a história da ciência da história da filosofia, e que cientistas e filósofos influenciaram-se mutuamente (quando ciência e filosofia não constituíam facetas inextricáveis do trabalho de um mesmo pensador, como é o caso de Descartes, de Leibniz, de Duhem e de tantos outros).

O título do livro que publiquei em 1998, Imagens de natureza, Imagens de ciência [6], já indica o que entendo por uma historiografia filosoficamente orientada da ciência: aquela que elabora reconstruções do passado atentas para os pressupostos filosóficos da pesquisa científica- tanto metafísicos (imagens de natureza) quanto epistemológicos e metodológicos (imagens de ciência). Esta é vista como o desenvolvimento de tradições de pesquisa plasmadas, em grande medida, por tais pressupostos. A despeito do seu racionalismo exacerbado, a noção de um “programa de pesquisas científicas”, proposta por Lakatos, captura bem, a meu ver, esse caráter da atividade científica, que se evidencia nas reconstruções de um historiador que seja sensível à dimensão filosófica daquela atividade.

O livro de 1998 reúne duas décadas das minhas pesquisas em história da ciência, com estudos de caso que abrangem um período que se estende da Antiguidade até o séc. XIX. Uma segunda edição, revista e bastante ampliada, foi publicada em 2016.

Na ‘Introdução’ desse livro, tento colocar em evidência a sua unidade, não só no que diz respeito às temáticas abordadas em diferentes momentos, mas também ao seu fio condutor filosófico. Defino, aí, as noções de imagem de natureza e de imagem de ciência, que funcionam como instrumentos metodológicos nas reconstruções históricas apresentadas. Tento defender, além disso, que essas imagens condicionam-se mutuamente e ofereço evidências disso em vários estudos de caso. Dessa maneira, o livro também delineia um modelo para a dinâmica do conhecimento científico, embora este não seja o seu objetivo central.

O livro Imagens incorpora partes das pesquisas que havia feito no meu doutorado sobre a(s) teoria(s) eletromagnética(s) de Maxwell e sua recepção na França. Um tópico que percorre vários dos estudos de caso apresentados é, efetivamente, o da transmissão da ação física. Diferentes concepções a respeito da transmissão da ação (transmissão à distância, ou de modo contíguo) integram diferentes imagens de natureza e constituem chaves para se compreender a história da noção de ‘campo’, que foi introduzida por Maxwell no séc. XIX.

Com base nesses estudos de caso contesto que o chamado ‘mecanicismo’ tenha sido a imagem hegemônica de natureza ao longo do séc. XVII, como é comum se afirmar. Argumento, ademais, que o dinamismo já era uma imagem de natureza bastante influente no séc. XVII, e foi compartilhada por cientistas tão diferentes e distanciados no tempo quanto Newton e Faraday.

Gostaria de destacar o capítulo 3 do livro Imagens, que resultou de uma extensa pesquisa que empreendi sobre as obras publicadas durante a vida de Newton, e também sobre os seus textos póstumos e a sua correspondência a respeito das especulações que arriscou fazer sobre a existência de um éter permeando o universo. Elas estão, no eminente filósofo natural britânico, diretamente associadas às suas concepções teístas sobre a relação entre Deus e Natureza. Essas concepções vão de encontro às de Descartes, que era um deísta. Essas tensões se refletem, por sua vez, nas distintas posições que esses dois gigantes do séc. XVII defendiam sobre a relação mente-corpo. A correspondência entre Leibniz e Clarke (discípulo e porta-voz de Newton) é uma peça fundamental para o estudo dessa controvérsia filosófica, que pautou muito do que se fez em filosofia da natureza ao longo do séc. XVIII, e mesmo além.

A segunda edição do livro Imagens de natureza, Imagens de ciência, publicada em 2016, inclui dois capítulos relativos à constituição da biologia como ciência nos sécs. XVIII e XIX, sendo um deles totalmente dedicado a Darwin. Pesquisei esses temas mais detidamente após passar a lecionar a disciplina história da biologia no Instituto de Ciências Biológicas da UnB (volto a isso adiante).[7]

Quero também mencionar, de passagem, um artigo que escrevi sobre a filosofia da ciência de Hertz e que foi incorporado, com modificações, na segunda edição do livro Imagens. Este artigo integrou uma coletânea dedicada à ciência do séc. XIX, publicada em 1992. Acho importante mencionar esse trabalho não somente pela sofisticação da filosofia de Hertz mas também pela influência que exerceu sobre filósofos do séc. XX (como Wittgenstein e os membros do Círculo de Viena). Nesse capítulo, relaciono o trabalho científico de Hertz, particularmente o seu trabalho experimental, e a sua filosofia da ciência. Algo semelhante fiz com Duhem, Poincaré e Maxwell na minha tese de doutorado, embora este último não tenha, como os dois primeiros, uma filosofia minimamente desenvolvida, sistemática e explícita.

A filosofia de Duhem, como exemplo de mais um cientista-filósofo do séc. XIX, foi objeto do meu artigo ‘Ciência, Epistemologia e História em Pierre Duhem’, publicado em 1989. Nesse artigo relaciono as três vertentes da prolífica atividade desse grande pesquisador, que também fez um trabalho monumental como historiador da ciência, mas que só foi plenamente resgatado nas últimas décadas do séc. XX. .

Todos esses estudos traduzem a minha persistente inquietação com as relações entre ciência e filosofia.

No artigo ‘Problemas metodológicos em historiografia da ciência’, publicado em 2002 e elaborado a partir de um texto que havia escrito, muitos anos antes, para uso nas minhas aulas, analiso detidamente as relações entre história e filosofia da ciência em diferentes correntes da filosofia contemporânea: tanto as de cepa francesa quanto anglo-saxônica. As questões de método no trabalho do historiador da ciência sempre me instigaram e decidi incluir uma versão atualizada deste artigo nas “Considerações metodológicas finais” da segunda edição de Imagens.

A minha pesquisa em história da ciência, propriamente dita, declinou significativamente em seguida, embora tenha continuado a lecionar essa disciplina. Dediquei-me a um trabalho mais sistemático e menos histórico- uma distinção frequentemente usada por filósofos-, embora tenha voltado a me interessar pela história da biologia depois de ter passado a lecionar no Instituto de Ciências Biológicas.