Paulo Abrantes - Filosofia

Cooperação e conflito na linhagem hominínea

Nas conclusões do artigo Abrantes (2013a) aponto para diferentes cenários com respeito ao tipo de interação que os grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno podem ter tido entre eles. Richerson e Boyd apostam em um cenário conflituoso, enquanto Sterelny aposta em um outro, que pressupõe, ao contrário, que aqueles grupos de hominíneos colaboraram ao longo do Pleistoceno com bastante frequência. Esforcei-me no sentido de confrontar esses cenários, entre outros, e de explicitar os seus pressupostos. Faço breve menção a esse tópico no projeto de pesquisa que apresentei ao CNPq em 2010: 

“De modo análogo ao papel indispensável da competição no processo de seleção natural como concebido por Darwin, e atuando no nível do indivíduo, a seleção no nível do grupo depende da existência de competição que, no caso extremo, pode manifestar-se na guerra entre grupos. A competição atua como limitador na sobrevivência dos grupos humanos ou na manutenção da sua integridade cultural.”

No projeto de pesquisa que submeti ao CNPq em 2014, esse tópico, e os vários cenários para a evolução humana que ele engendra, ganham destaque já na Introdução:

“Num desses cenários, a seleção no nível do grupo é considerada um fator crucial para que a cooperação tenha evoluído e se estabilizado nos grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno. Os defensores do outro cenário apostam que basta a seleção em níveis inferiores ao do grupo para explicar a evolução da cooperação, o que é menos controverso diante da resistência, sobretudo dos biólogos, em admitir que a seleção em níveis mais altos que o do organismo individual tenha intensidade suficiente para ser contabilizada (…). No centro do atual projeto de pesquisa está a discussão, clássica em filosofia da biologia, em torno dos níveis de seleção. Ela se insere num programa que se propõe a ampliar os recursos conceituais da teoria da evolução no sentido de lidar com o papel que a cultura desempenha, de modo especial, na evolução humana.”

Comparo os cenários desenhados por Richerson e Boyd, de um lado, e Sterelny, de outro, em um artigo com o título ‘Conflito e cooperação na evolução humana’,  que integra um número especial que organizei sobre Evolução Humana a convite do editor do periódico Ciência & Ambiente, e que foi publicado em 2014. Os artigos desse número estão disponíveis na minha página na rede e podem ser baixados livremente.

Permito-me citar o resumo desse meu capítulo, com o intuito de mostrar a continuidade com a pesquisa que segui desenvolvendo:

“A cooperação no caso humano dá-se em larga escala, e os mecanismos da seleção de parentesco e do altruísmo recíproco revelam-se insuficientes para explicá-la. Uma outra explicação postula uma segunda modalidade de herança, a cultural, ao lado da herança genética. A cooperação humana estaria assentada, nesse cenário, num intrincado processo de coevolução gene-cultura em que grupos que adotaram normas e instituições que favoreciam a cooperação tiveram maior aptidão, em nosso passado evolutivo, do que grupos nos quais as variantes culturais não inibiam comportamentos egoístas. A seleção no nível do grupo é vista como central- uma solução para a qual Darwin já havia acenado-, e o conflito entre grupos é um requisito para que tenha intensidade. O artigo discute um cenário alternativo em que a cooperação entre grupos teria sido muito mais frequente no Pleistoceno do que é admitido no primeiro; a psicologia pró-social teria evoluído na linhagem hominínea antes mesmo do surgimento do homem anatomicamente moderno e por uma seleção atuando no nível do indivíduo.”

Apresentei uma versão preliminar desse texto no Congresso da Sociedade Interamericana de Filosofia que ocorreu em Salvador em 2013- numa seção dedicada à filosofia da biologia-, e também no IX Encontro da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), que ocorreu em Córdoba, Argentina, em 2014.

Foi desafiador levar a cabo o número especial de Ciência & Ambiente, que acabo de referir, sobretudo porque não concebo que se possa abordar a evolução humana, em toda a sua complexidade e nas suas mais diversas dimensões, sem contar com especialistas das mais diversas áreas- num espectro que vai da filosofia à biologia e outras ciências naturais, passando pelas ciências sociais e pela psicologia. Comecei por fazer um levantamento dos especialistas que trabalham no Brasil em antropologia, biologia, psicologia, filosofia, história e direito, para citar somente as grandes áreas representadas na obra. Em seguida, os convenci da importância do empreendimento, que é incomum e, ao meu conhecimento, foi inédito em nosso país. O fato de um filósofo estar à testa do mesmo talvez tenha surpreendido muitos dos colaboradores (que sequer me conheciam pessoalmente)!

Convidei também especialistas de outros países para tratarem de temas específicos, que não poderiam ser deixados de fora sem comprometer a abrangência temática que eu concebera para a coletânea. Um deles é a evolução da linguagem, abordado por Telmo Pievani. Resultou, desse esforço de mais de um ano, uma obra com 20 capítulos e mais de 300 páginas, que superou em muito as minhas expectativas.

Acredito que essa publicação apresenta uma visão acurada do estado da arte, ao aproximar áreas que, no Brasil sobretudo, abordam o tema da evolução humana de forma estanque, e com um foco demasiadamente restrito. Na Apresentação geral que fiz para o número especial afirmo que essa é uma “missão própria da filosofia: a de integrar abordagens e estabelecer conexões entre diferentes áreas do conhecimento, contrapondo-se à sua fragmentação e a visões por demais estreitas da realidade.”

Escrevi, também, uma Introdução para esse número com o título ‘Natureza e Cultura’. Nela defendo que a dicotomia natureza(humana)/cultura é um dos principais obstáculos para que especialistas dos campos das ciências humanas e das ciências naturais somem esforços no sentido de compreender os fenômenos complexos associados à evolução humana, o que me parece indispensável. Para questionar essa dicotomia precisei fazer um trabalho conceitual prévio em torno das noções de ‘natureza’ e de ‘cultura’. Este último conceito ocupa-me, sobremaneira, nessa Introdução, embora faça algumas considerações sobre a (controversa) noção de ‘natureza humana’. 

Após um rápido histórico sobre as origens dessa dicotomia, desenvolvo uma crítica a ela com base não somente na teoria da dupla herança- que defende, abertamente, a sua superação- e em ideias menos ortodoxas de antropólogos como Tim Ingold, que vão no mesmo sentido. Também apoio-me em discussões filosóficas a respeito dos fundamentos da biologia evolutiva. Argumento que várias tentativas que estão sendo feitas, atualmente, para estender os recursos explicativos da teoria da evolução que emergiu da grande síntese da primeira metade do século passado- em especial as que pregam que desenvolvimento e evolução são processos que não podem ser dissociados-, também conduzem ao questionamento da dicotomia natureza/cultura. Com esta Introdução, pretendi sublinhar o pano de fundo filosófico das discussões levadas a cabo nesse número especial de Ciência & Ambiente.

Registro, nesse ponto do Memorial, que a dicotomia natureza/cultura foi tema da minha aula inaugural no Departamento de Filosofia da UnB em 2017.

Espero ter aberto espaço, como filósofo, para um diálogo entre áreas do conhecimento que, usualmente, não interagem (quando não se repelem mutualmente). Considero que favorecer esse intercâmbio seja uma das contribuições que a filosofia pode dar em um mundo acadêmico cada vez mais compartimentado, a despeito das declarações, de modo geral puramente retóricas, a favor da ‘interdisciplinaridade’.