Se tivesse que enquadrar o meu trabalho de pesquisa posterior em alguma área da filosofia, eu escolheria a filosofia da biologia (enquanto subárea da filosofia da ciência). Mas esses enquadramentos são sempre problemáticos e limitam, demasiadamente, o escopo da pesquisa que abrange, na verdade, diferentes áreas da filosofia, como mostrarei a seguir.
O projeto que propus ao CNPq para o período 2003-2006 mantém o mesmo título do projeto de 2000, mas há uma clara mudança de ênfase. Eu me proponho, agora, a explorar “as credenciais das explicações adaptacionistas para a (evolução da) cognição”, e faço uma rápida apresentação dos trabalhos de Sterelny e Godfrey-Smith. O projeto já previa, de fato, a solicitação de uma licença para trabalhar com esses pesquisadores na Austrália, no âmbito de um segundo pós-doutorado. Eu acreditava poder enquadrar essa temática na distinção, que havia analisado no projeto anterior, entre uma epistemologia evolucionista de teorias e uma epistemologia evolucionista de mecanismos. Havia uma intenção explícita, portanto, de fazer um uso literal, e não mais metafórico, da teoria da evolução na exploração de problemas filosóficos, em especial o problema mente-corpo. Isso me levou a adotar, na abordagem deste problema, uma perspectiva diacrônica, e não sincrônica como é mais usual. Estava preocupado em compreender como evoluíram mentes de certos tipos, dadas certas condições ambientais.
A “tese da complexidade ambiental” proposta por Godfrey-Smith (1998) é destacada no projeto de 2003 por pretender explorar cenários adaptacionistas para a evolução de mentes, em termos da sua função no controle do comportamento de organismos situados em diferentes ambientes. Também tematizo a categorização, proposta por ele, de diferentes posições em filosofia como sendo ‘externalistas’ e ‘internalistas’, o que remete a (cito o projeto) …
“… dois padrões clássicos de explicação utilizados em diversas ciências e áreas da filosofia, permitindo organizar, num esquema abrangente, antagonismos tradicionais (como os que opõem empiristas a racionalistas, positivistas a construtivistas, realistas a não-realistas, reducionistas a não-reducionistas …)”.
Sterelny é, por sua vez, mencionado por sua proposta de explicar, em termos adaptacionistas, a evolução dos sistemas intencionais. Indico, contudo, que ele adota um adaptacionismo “moderado”, o que permite contemplar a crítica que construtivistas como Lewontin e Gould fizeram aos compromissos filosóficos do programa adaptacionista.
Portanto, o projeto de 2003 direciona, claramente, a minha pesquisa para temas de fundamentos em biologia (em especial os que requerem esclarecimento dos conceitos de adaptação e de função), bem como para uma explicação da origem evolutiva de mentes de diferentes tipos, o que se tornou o foco da pesquisa a partir daí. A expectativa era que o conceito de função biológica, sobretudo, tivesse relevância não somente para análises no âmbito da filosofia da biologia, em particular, e da filosofia da ciência, em geral, mas também no da filosofia da mente. Nesta última área, eu vislumbrava uma articulação mais satisfatória do funcionalismo como proposta de solução para o problema mente-corpo, que contornasse as dificuldades apontadas pelos críticos às tentativas feitas, até então, de abordar esse problema segundo um prisma funcionalista. Nesse espírito, Sober defendeu em um artigo de 1985 (republicado em Lycan, 1999) que temos que “colocar a função de volta no funcionalismo”, fazendo menção explícita ao conceito de função biológica.[19]
Também menciono, no projeto de 2003, o artigo que estava escrevendo com o biólogo Charbel N. El-Hani da UFBA, voltado para o tema da individuação de “teorias ou programas científicos, considerados enquanto entidades históricas, com especial atenção para a teoria ou programa darwinista”. O ponto de partida desse artigo é uma polêmica que travaram S. J. Gould e D. Hull sobre a individuação da teoria darwinista. O que fizemos foi estender as posições defendidas por eles para quaisquer teorias científicas (ampliando, portanto, o escopo da controvérsia para uma filosofia geral da ciência).
Ainda no domínio da filosofia da ciência explicito, no projeto de 2003, o meu objetivo de explorar, na esteira do que fizera Hull, as “implicações metodológicas de uma abordagem selecionista da ciência”.[20]
A pesquisa que vinha fazendo desde 2000 refletiu-se, como é de se esperar, nos cursos que lecionei nesse período na pós-graduação do Departamento de Filosofia. Em 2002, ofereci um curso com o objetivo de “estudar uma das vertentes da epistemologia contemporânea, a epistemologia evolucionista e o programa de um ‘darwinismo universal’ “. Em 2004, ofereci uma disciplina abordando os principais programas em desenvolvimento para explicar a evolução humana: a psicologia evolutiva, a ecologia comportamental humana, a memética e a abordagem de coevolução gene-cultura.
Em 2003 gozei parte da minha licença sabática na condição de pesquisador visitante da Research School of Social Sciences (RSSS) da Universidade Nacional Australiana, onde desenvolvi um projeto de pesquisa com o título ‘Cenários para a evolução da mente humana’. Nessa oportunidade, tive contato mais próximo com as abordagens de K. Sterelny (eu havia lido, ainda no Brasil, uma versão preprint do seu livro Thought in a hostile world, que viria a ser publicado em 2003), e de Godfrey-Smith (2002, 2004) sobre a evolução da cognição e do comportamento humanos.
A importância dessa minha visita à RSSS não pode ser superestimada. Pude trocar idéias com dois dos mais importantes filósofos da biologia em atividade, e as minhas pesquisas voltaram-se, de modo consistente e duradouro, para a interface entre a filosofia da psicologia, especialmente no que diz respeito à estrutura e ao status da psicologia de senso comum (folk psychology) e a filosofia da biologia. Também passei a explorar aplicações de modelos biológicos, em especial evolutivos, à dinâmica científica e, de modo mais amplo, à dinâmica cultural.[21] Desse ponto em diante a minha pesquisa explorou múltiplos aspectos da supracitada interface.
Em julho de 2004 passei a ter uma segunda lotação no Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB, o que deu ainda maior significado à minha pesquisa em filosofia da biologia, que passou a ter como foco o tópico da evolução humana.
No bojo da minha dupla lotação no IB, eu e a bióloga Maria Luíza Gastal criamos as disciplinas ‘História da Biologia’ e ‘Filosofia da Biologia’ (em 2004). Também modificamos a ementa da disciplina ‘Dinâmica da Construção do Conhecimento Científico’, que estava desativada há anos. A partir daquele ano, oferecí regularmente essas disciplinas no curso de graduação em biologia, e que se tornaram também optativas para os alunos do Departamento de Filosofia. Também tive várias participações no curso de ‘Evolução humana’, oferecido na pós-graduação do IB, ao lado das biólogas Nilda Diniz e Silviene Oliveira.
Nessa época, formei um grupo de discussão em filosofia da biologia composto por alunos que haviam cursado as disciplinas que oferecera no Mestrado em Filosofia, em 2002 e em 2004. Este grupo foi o embrião de um grupo de pesquisas em filosofia da biologia na UnB que foi registrado com o nome ‘Mente, Linguagem e Evolução’ (MELE). A história desse grupo é contada em detalhes, ao lado deste Memorial, em outra página de Memória.
Compatibilismo e evolução humana
Compatibilismo e evolução humana
Relembro que desde 2000 passei a explorar convergências entre a epistemologia, a filosofia da mente e a filosofia da biologia. A intenção era de tentar estender as possibilidades explicativas do mecanismo darwinista de seleção natural a essas outras áreas. A partir de 2003 e, de forma mais clara, após retornar do meu pós-doutorado na Austrália, avaliei que a vertente mais promissora da minha pesquisa seria o tópico da evolução da mente humana, em que aquelas convergências dar-se-iam, digamos, forçosamente.
Na primeira etapa dessa investigação, ainda sob a influência dos trabalhos de Sterelny e Godfrey-Smith, explorei a aproximação entre, de um lado, as imagens de senso comum a respeito do que nos constitui enquanto pessoas e agentes- imagens pressupostas por grande parte da filosofia e também pelas ciências sociais- e, de outro, imagens que permeiam a biologia e que remetem à nossa natureza animal. O tópico da evolução humana é particularmente adequado para efetivar essa aproximação, já que permite confrontar essas diversas imagens e fazer confluir as pesquisas por elas motivadas.
Tratava-se de uma aposta, portanto, na contribuição que a filosofia pode dar no sentido de integrar a perspectiva adotada pelas ciências sociais a respeito do caráter de agentes humanos, e a perspectiva adotada pela biologia evolutiva que tem por objeto a espécie o Homo sapiens.
Publiquei a esse respeito, em 2006, um artigo na revista Manuscrito, ‘A psicologia de senso comum em cenários para a evolução da mente humana’. Este artigo marcou, efetivamente, a nova orientação que imprimi à pesquisa desde então.
Por algum tempo abordei, em artigos e palestras, o que Sterelny denomina os ‘projetos integradores interno e externo’. Com isso, eu voltava a lidar com uma temática metafilosófica- que havia deixado para trás com a publicação dos meus artigos sobre o naturalismo do final dos anos 1990, como assinalei anteriormente. Espero deixar mais claro, a seguir, a tese de que uma das tarefas centrais da filosofia é a de integrar as concepções de senso comum com as concepções científicas, particularmente no âmbito psicológico.
Além do artigo de 2006 na Manuscrito, já citado, publiquei outros em que essa temática metafilosófica é explicitamente abordada: ‘La imagen filosófica de los agentes humanos y la evolución en el linaje homínido’, em 2010; ‘Human evolution: compatibilist approaches’, em 2011; ‘A esfera do mental: filosofia, ciência e senso comum’, também em 2011; ‘Evolução humana: estudos filosóficos’, em 2013. Este último artigo pretende condensar e articular o que havia publicado até então sobre evolução humana. Posteriormente, apresentei uma síntese ainda mais abrangente de toda a minha pesquisa sobre esse tópico (em Abrantes, 2018a).
Submeti ao CNPq, em 2006, um projeto de pesquisa com um novo título ‘Mente, Cultura e Evolução’. Seus objetivos apontavam numa direção ‘compatibilista’ (embora não usasse o termo à época) na medida em que pretendia integrar as imagens de senso comum e as imagens científicas a respeito da condição humana. Avalio, no projeto, que o tema da evolução humana é particularmente propício para efetivar essa integração:
” … Aposto, portanto, na contribuição que a filosofia pode dar no sentido de integrar ou, pelo menos, de aproximar perspectivas adotadas pelas ciências sociais- a respeito do caráter de agentes humanos -, e perspectivas adotadas pela biologia evolutiva (…) A filosofia e as ciências sociais sempre convergiram no modo como concebem as nossas particularidades enquanto agentes, e a biologia aponta para continuidades em nossa inserção na ‘escala da natureza’- usando aqui uma expressão que possui uma longa história. Deveria haver um maior intercâmbio entre essas perspectivas- visando a um entendimento menos fragmentário e parcial do que somos nós-, mas isso não vem sendo feito de modo sistemático e frutífero.”
Sterelny e Godfrey-Smith argumentam que as nossas “habilidades interpretativas”- ou seja, habilidades para imputar estados mentais com base em alguma versão de uma psicologia de senso comum-, tiveram um papel crucial na evolução humana. Em outros termos, a explicação de como evoluiu uma ‘inteligência social’ associada a tais habilidades para a leitura de mentes (mindreading) é vista como um objetivo inescapável de qualquer teoria que pretenda abordar a evolução da mente humana. Essa teoria teria que explicar não só a evolução de uma intencionalidade de primeira ordem- ou seja, a evolução de sistemas intencionais-, mas também de uma intencionalidade de ordem mais alta, requerida por uma inteligência capaz de lidar com a complexidade do ambiente social.
Por vários anos as minhas leituras e pesquisas foram balizadas pela hipótese de que algo como uma ‘teoria da mente’ (expressão não muito feliz, introduzida por primatólogos), ou, de forma menos equívoca, a capacidade para leitura de mentes, teve um papel crucial na evolução humana: seja para explicar como lidamos cada vez melhor, enquanto indivíduos de uma espécie biológica, com a complexidade social, seja para explicar como nos tornamos melhores aprendizes sociais e exímios imitadores.
Esse interesse pelo “papel que o conhecimento de senso comum, com ênfase na psicologia de senso comum, desempenha na investigação filosófica e nas ciências sociais, e suas implicações para a articulação de uma teoria da evolução humana” levou-me, por sua vez, a estudar os trabalhos de Lynne Baker (1995) e do eminente filósofo argentino Eduardo Rabossi (2004). Dei palestras a esse respeito em várias oportunidades, mas limito-me a destacar a minha participação em uma mesa-redonda organizada em homenagem ao saudoso Eduardo Rabossi no VIII Colóquio Internacional Bariloche de Filosofía, em setembro de 2006. Rabossi havia falecido pouco antes, e essa participação foi muito significativa para mim pois havíamos tido um fértil intercâmbio em várias visitas que fizera à Argentina, a convite dele.
Pode-se perguntar como essa preocupação com a esfera do senso comum pode ser conciliada com uma postura naturalista. Levanto essa questão no artigo que publiquei na Manuscrito em 2006, onde mostro que o naturalismo de um Sterelny, por exemplo, o faz privilegiar, em última instância, o projeto integrador interno (de integrar as ciências sociais e as ciências naturais), deixando em situação precária as intuições com base no senso comum (o contraste, nesse tocante, com Lynne Baker é flagrante).