No projeto de 2006 faço menção à teoria da dupla herança que Richerson e Boyd construíram para explicar a evolução humana, e que se mostrou das mais relevantes para a direção que tomaria a minha pesquisa nos anos seguintes. Essa avaliação faço-a da perspectiva privilegiada em que me encontro hoje, mas não antecipava isso à época.
A teoria proposta por esses antropólogos-biológos supõe uma “inextricabilidade entre natureza e cultura, particularmente no caso da evolução humana. As relações são de mão dupla: um processo cultural cumulativo pressupõe certas capacidades cognitivas e, por sua vez, uma cultura sofisticada, resultado daquele processo, implica numa trajetória evolutiva particular para a mente na linhagem hominídea”.
A leitura do livro de Richerson e Boyd, Not by genes alone (2005), que fiz nessa época, lançou uma nova luz sobre os tópicos que vinha estudando nas publicações dos filósofos Sterelny e Godfrey-Smith. Problemas conceituais os quais não havia tratado anteriormente- como os associados à noção de ‘cultura’ e ao papel desempenhado pela aprendizagem social-, passaram a ocupar-me intensamente.
Comparei os pressupostos das várias teorias, atualmente em disputa, sobre a evolução humana- em especial a psicologia evolucionista e as teorias de coevolução gene-cultura (a teoria proposta por Richerson e Boyd insere-se neste último campo). Desde a leitura que fiz de Sterelny, adotei uma postura crítica com respeito à psicologia evolucionista advogada pela escola de Santa Bárbara (sendo J. Tooby, que havia conhecido no congresso da Rutgers University a que me referi acima, o seu representante mais emblemático). Em particular, passei a contestar o pressuposto de que a mente humana seria modular em grande escala. A noção de ‘módulo’, que Fodor havia formulado, é adotada por essa concepção da arquitetura da mente humana:
“A psicologia evolutiva exemplifica uma abordagem inatista com respeito à cognição humana e, em particular, com respeito às nossas habilidades interpretativas. Os psicólogos evolutivos extrapolaram alguns argumentos de Chomsky e de Fodor a favor da existência de módulos para a linguagem e para os mecanismos sensoriais, e passaram a argumentar a favor de uma arquitetura extensamente modular para a mente humana.”
Enquanto a psicologia evolucionista concede um lugar bastante limitado à cultura, a teoria da dupla herança torna a cultura um fator central na evolução humana. O adaptacionismo irrestrito da psicologia evolucionista cede espaço a posições construtivistas, com as quais havia travado contato, sobretudo, a partir do trabalho de Sterelny. A controvérsia que opõe ‘adaptacionistas’ e ‘construtivistas’, tão central em filosofia da biologia, passou a ter uma aplicação imediata, bem como a temática dos níveis de seleção, da existência de modalidades não-genéticas de herança e da construção de nichos, que já vinha estudando sistematicamente desde 1998. De fato, para Richerson e Boyd a evolução humana só pode ser explicada se supusermos que a seleção atua também no nível do grupo, e não só em níveis inferiores (os do organismo e do gene).[22] Uma pré-condição para que a seleção no nível de grupo tenha intensidade é a acumulação cultural o que, por sua vez, pressupõe que a cultura tenha passado a ser, a partir de um certo momento, uma nova modalidade de herança na linhagem hominínea.[23] Para tanto, certas capacidades cognitivas são indispensáveis, em particular a capacidade para ler mentes (mindreading). A minha antiga pretensão de fazer convergir discussões em filosofia da biologia, em filosofia da psicologia e em filosofia da mente começava a se concretizar!
Faço notar, de passagem, que as várias publicações de Richerson e Boyd fazem um uso extensivo da modelagem matemática. Como relatei no início deste Memorial, desde a minha pesquisa de doutorado o uso de modelos nas várias ciências suscitava o meu interesse. Não deixei de aproveitar a oportunidade para explorar, novamente, esse tópico no âmbito da construção, por aqueles antropólogos, da teoria da dupla herança. Publiquei, em 2011, um artigo a esse respeito com o título ‘Methodological issues in the dual inheritance account of human evolution’.[24]
O projeto de pesquisa que propus ao CNPq em 2010 tem por título ‘Cooperação e evolução humana’. Aí começo a articular os temas que passei a privilegiar.
Retrospectivamente, a minha pesquisa desde 1998 pode ser vista como uma longa preparação para lidar com este que é um dos tópicos mais candentes da atualidade, e que tem capitalizado competências em vários domínios: psicologia, antropologia, biologia, arqueologia, paleontologia, para citar somente alguns. Filósofos têm se interessado pelo tema e dado contribuições decisivas no delineamento de cenários plausíveis para a evolução da cooperação.
Inicio o projeto sublinhando que “os diferentes programas que, na atualidade, enfrentam especificamente o problema da cooperação nos grupos humanos, colocam problemas conceituais, metafísicos e metodológicos de grande relevância para o filósofo da biologia.”
A teoria da dupla herança mantém-se a referência principal do projeto:
“Richerson e Boyd partem das diferenças entre as características atuais da espécie humana em comparação com outras espécies, tomadas como evidentes pelo senso comum e que são pressupostas tanto pela filosofia quanto pelas ciências sociais. Levando essas diferenças a sério na construção de cenários para a evolução da nossa espécie, eles propõem-se a construir uma teoria ‘enraizada na melhor ciência social’ (2005, p. 60).”
No resumo que faço ao final do projeto, volto a enfatizar o caráter espécie-específico da evolução humana:
“… a evidente existência de cooperação nas sociedades humanas é uma anomalia no mundo animal, onde só há cooperação em pequena escala (quando os indivíduos não são aparentados geneticamente). O caso humano é o único onde a cooperação se tornou possível em larga escala, e os mecanismos de seleção de parentesco, do altruísmo recíproco e da sanção moral revelam-se insuficientes para explicá-la. De acordo com Richerson e Boyd, a cooperação anômala que se dá no caso humano somente encontra uma explicação plausível em uma abordagem evolutiva que leve em consideração o surgimento de uma outra modalidade de herança, a cultural, ao lado da herança genética.”
Comprometo-me, então, a comparar a abordagem da dupla herança, à época praticamente desconhecida no Brasil, com outras teorias que tinham, e continuam tendo em alguma medida, maior difusão entre nós, particularmente a psicologia evolucionista.
Entre os resultados esperados da pesquisa arrolo, no projeto de 2010, a organização de “uma Coletânea de Filosofia da Biologia, envolvendo vários autores.” Eu já vinha oferecendo, há anos, a disciplina ‘filosofia da biologia’ desde que passei a ter uma lotação parcial no Instituto de Ciências Biológicas e sentia falta de uma bibliografia em português que pudesse servir de apoio para os estudantes. Tive, então, a ideia de fazer uma obra coletiva com a colaboração dos filósofos da biologia brasileiros e de outros países da América Latina, que faziam parte do chamado ‘Grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista’. Fui um dos fundadores do Grupo, que se reuniu pela primeira vez em 2006, na Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. O Grupo aderiu, prontamente, ao projeto e daí resultou a obra coletiva que foi publicada em 2011, com contribuições originais não somente dos membros do Grupo de Bogotá mas também de outros pesquisadores que convidei especialmente, de modo a que pudesse cobrir, da forma a mais ampla possível, os tópicos fundamentais que são hoje discutidos nessa área. Orgulho-me deste que foi o primeiro livro abrangente de filosofia da biologia publicado no Brasil (área que contava com uma produção escassa entre nós). Um nova edição dessa obra coletiva, no formato e-book e de acesso livre na rede, foi publicada em 2018. Ela pode ser baixada da presente página.
Este livro é, também, significativo pelo fato de eu ter nele publicado o primeiro artigo, em colaboração com Fábio Portela de Almeida, um ex-orientando, sobre a teoria da dupla herança de Richerson e Boyd, que era desconhecida no Brasil- a despeito do seu grande reconhecimento internacional enquanto uma das maiores contribuições para a compreensão da evolução humana e do papel que a cultura desempenhou nesse processo, como adiantei acima.
Publiquei vários outros artigos, e orientei trabalhos na graduação e na pós-graduação, que tiveram como pano de fundo a teoria da dupla herança. Merece destaque, justamente, a dissertação de mestrado do Fábio de Almeida, com o título ‘A evolução da mente normativa: origens darwinistas da cooperação humana’, que veio a ganhar o prêmio ANPOF de melhor dissertação em filosofia no ano de 2012.