Paulo Abrantes - Filosofia

Filosofia da ciência: modelos e raciocínio analógico

A pesquisa central que desenvolvi no primeiro pós-doutorado, iniciado em 1994 no Center for Philosophy of Science da Universidade de Pittsburgh (do qual sou um fellow), foi diretamente motivada pela convergência, por um lado, do meu antigo envolvimento com a temática da descoberta científica (no âmbito da metodologia) e, por outro lado, dos meus estudos, posteriores, sobre raciocínio analógico– com atenção especial não só para como esse tipo de raciocínio é abordado em psicologia cognitiva mas também para as tentativas, que vinham sendo feitas em inteligência artificial, para implementá-lo em máquinas (ambas áreas de investigação integram o campo das ciências cognitivas). De fato, é comum considerar-se o raciocínio analógico como importante no processo de construção de hipóteses e de teorias nas ciências. Existe uma longa tradição a esse respeito na filosofia da ciência do séc. XX, que remonta ao livro de N. R. Campbell publicado em 1920. Discuto essa tradição em um artigo que viria a publicar na revista Philosophos em 2004 (ao qual voltarei abaixo).[9]

Lembro-me que no ano anterior à minha ida para o Centro de Pittsburgh, havia estudado intensamente os temas da metáfora e da analogia. Os trabalhos de Black (1962, 1979), Boyd (1979), Gentner (1989) e  Indurkhya (1992), bem como os artigos da coletânea de Vosniadou e Ortony (1989), foram especialmente relevantes. A leitura do artigo de Marcos Barbosa de Oliveira, que eu havia publicado como organizador na já mencionada Coletânea de 1993, também foi muito útil para introduzir-me na literatura sobre teorias de conceitos. Por intermédio desse artigo tive contato com a concepção teórica sobre conceitos, defendida pela psicóloga E. Rosch, que me pareceu especialmente convincente. Eu também estava relendo, nessa época, M. Hesse (1966), que possui uma obra clássica sobre modelos e analogias na ciência, com a qual já tivera contato desde as pesquisas de doutorado sobre o uso de modelos por Maxwell. 

O meu projeto de pós-doutorado no Centro de Pittsburgh, apoiado pelo CNPq, tinha por título ‘Raciocínio analógico e descoberta científica’ e desenvolveu-se ao longo de dois anos durante os quais pude aprofundar os meus estudos em diversas áreas das chamadas ‘ciências cognitivas’. Na ocasião, tive a oportunidade de assistir ao 17o Congresso da Cognitive Science Society, que ocorreu na Universidade de Pittsburgh em 1995, no qual foram apresentados trabalhos sobre raciocínio analógico, raciocínio baseado em casos, modelos mentais (este por Philipp Johnson-Laird, que apresentou o tópico em pessoa), entre outros.

Esse pós-doutorado me permitiu, além da pesquisa desenvolvida e seus produtos, uma inserção na comunidade internacional de filosofia da ciência. O Centro da Universidade de Pittsburgh é muito ativo, com palestras semanais dadas por filósofos convidados e antigos fellows, de diversos países. Pittsburgh é, de fato, o centro de uma rede de filósofos da ciência espalhados por todo o mundo, que se reúnem periodicamente nas concorridas Quadrienial Fellows Conferences que têm lugar, a cada congresso, em um país diferente. Participei de muitos deles, desde a minha visita pós-doutoral ao Centro. No sétimo desses congressos, ocorrido em Mugla, na Turquia, em 2012, apresentei a minha pesquisa, de que falarei ao final deste Memorial, sobre ‘Cultura e transições em individualidade’.

Resultaram da pesquisa que fiz em Pittsburgh, de imediato, três publicações: ‘Kuhn e a noção de ‘exemplar’’ (1998); ‘Simulação e Realidade’ (1999) e ‘Analogical reasoning and modeling in the sciences’ (1999). Neste último artigo, que tem tido bastante impacto, proponho um modelo para o raciocínio analógico aplicável à ciência, com base no estudo que fizera da literatura sobre o tema em psicologia e também a que dizia respeito às simulações computacionais desse tipo de raciocínio.

No artigo de 1998, proponho uma releitura da contribuição de Kuhn à filosofia da ciência, em que coloco em evidência as suas reflexões sobre o papel que desempenham os exemplares e a modelagem analógica na ciência normal. O artigo de 1999 constitui um estudo geral sobre a noção de modelo, em que distingo seus diferentes tipos e abordo a metodologia das simulações no trabalho científico.[10]

Esse meu engajamento em uma pesquisa filosófica explicitamente tributária do conhecimento científico em várias áreas denunciava, por sua vez, um envolvimento, agora não mais meramente propedêutico, por assim dizer, com o naturalismo. Passei, por exemplo, a aplicar à metodologia científica resultados obtidos em diversas ciências cognitivas. Manifestava-se novamente, mas de outra forma, a minha insatisfação com uma filosofia da ciência mais ortodoxa, de cunho formalista e reconstrutivista, que me parecia por demais distante da ciência como é efetivamente praticada.

Metametodologias naturalistas, como o “naturalismo normativo” proposto por Laudan, exerceram seguramente uma significativa influência sobre a orientação naturalista que imprimi à minha pesquisa em filosofia da ciência. Li, em 1990, o seu livro Science and Values e foi, ao lado dos trabalhos de Lakatos e de Kuhn, um dos que marcaram de modo decisivo a minha pesquisa em filosofia da ciência.

Cabem duas ressalvas a respeito da apropriação que fiz da postura naturalista de Laudan. Ele, como sabemos, privilegiou a história da ciência na articulação da sua metametodologia. Mais ou menos na mesma época em que o lia, comecei a ter contato com filósofos que incorporavam, explicitamente, o conhecimento produzido no âmbito das ciências cognitivas, como Giere, Thagard e Churchland. Por outro lado, a perspectiva normativa- usualmente associada à metodologia e que tanto mobilizou Laudan- não é central ao trabalho que desenvolvi em Pittsburgh.

Por trás da temática do raciocínio analógico, a que lá me dediquei, estava também o meu antigo interesse, que datava da dissertação de DEA, pelo uso de modelos (analógicos) na pesquisa científica. O tema dos modelos continuou sendo objeto das minhas pesquisas em filosofia da ciência. Destaco, em particular, o artigo ‘Models and the Dynamics of Theories’, que publiquei em 2004, agregando vários anos de estudo a respeito da história da noção de modelo e da sua relação com teorias, na filosofia da ciência do século XX.[11]