Godfrey-Smith exerceu grande influência sobre a minha pesquisa. Eu o conheci, pessoalmente, durante o pós-doutorado que fiz na RSSS da Universidade Nacional Australiana, e encontramo-nos também várias vezes nos congressos da International Society for History, Philosophy, and Social Studies of Biology (ISHPSSB).
Em 2009, ele publicou o livro Darwinian populations and natural selection e fui capturado pela sua leitura, embora tenha sido árdua, pois seu texto é muito denso.[25] Li o livro com toda a bagagem que possuía a respeito da teoria da dupla herança, que havia trabalhado minuciosamente nos anos anteriores. Esse livro estimulou-me, por sua vez, a estudar a literatura (já clássica) sobre transições em individualidade.
A leitura do capítulo 8, sobre ‘Evolução cultural’, sugeriu-me, de imediato, uma questão que iria ocupar-me por um bom tempo. Não me pareceu que este capítulo se encaixava, ou mesmo que fosse consistente, com o esquema conceitual que Godfrey-Smith desenvolvera nos capítulos anteriores. A meu ver, ele não deu um passo que me parecia uma decorrência natural do que vinha desenvolvendo no livro de 2009: investigar a hipótese de que o surgimento de grupos culturais humanos pode ter correspondido a uma transição em individualidade, como as outras que ocorreram na história da vida desde o seu surgimento na Terra. Se essa reconstrução fosse plausível, promoveria uma sedutora unificação do nosso quadro de mundo!
Antes de entrar em mais detalhes a respeito de como enfrentei esse problema, gostaria de assinalar que tive vários encontros com Godfrey-Smith no Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard no final de 2009, onde passava parte do ano à época. Isso foi durante uma licença para capacitação que gozei. Após esses encontros, segui para Los Angeles para conhecer Richard Boyd, que integrava, à época, o Departamento de Antrolologia da UCLA. Pude, então, discutir detalhes da teoria da dupla herança, que constituíra o tópico central da pesquisa que eu desenvolvera no triênio 2007-2010, e que continuou sendo uma referência para a pesquisa que fiz posteriormente. Eu alinhavei algumas críticas à teoria, em especial ao que ele e Richerson denominam, no seu livro clássico de 2005, o “dilema adaptacionista”.[26]
Essa viagem me levou de um Departamento de Filosofia para um de Antropologia! Esse trânsito é representativo daquele, de outra ordem, entre filosofia e ciência, que caracteriza muito do que fiz ao longo da minha carreira acadêmica. De encontros com um filósofo, Godfrey-Smith, passei a ter encontros com um biólogo e antropólogo, Richard Boyd. Lembro-me que na discussão que tive com cada um deles estiveram em pauta a importância do viés conformista na evolução humana e o papel da cultura nesse processo. Com Godfrey-Smith essa discussão se inseria em uma preocupação mais ampla com transições em individualidade, na busca de um quadro unificado de mundo; com Boyd questões conceituais e empíricas se relacionaram mais estreitamente (ele preparava-se para viajar com uma orientanda com o objetivo de fazer observações em uma comunidade de uma ilha do Pacífico). O peso relativo que têm problemas conceituais e problemas empíricos diz muito, a meu ver, a respeito do que distingue a pesquisa filosófica da pesquisa científica. Um naturalista defende, entretanto, que a diferença é somente de grau, e que esses dois tipos de problemas constrangem-se mutuamente, mesmo em filosofia.
Em 2011, apresentei no Colóquio Principia uma palestra em que abordei, pela primeira vez em público, a questão de se o surgimento de grupos culturais coesos e igualitários pode ser visto como uma transição em individualidade na linhagem hominínea. Esta palestra foi publicada na forma de um capítulo com o título ‘Culture and transitions in individuality’ (em Abrantes, 2011e). Eu o escrevi em inglês para poder, eventualmente, discuti-lo com colegas de outros países. No resumo do artigo, coloco as questões que me inquietavam:
“Some ‘major’ evolutionary transitions have been described as transitions in individuality. In this depiction, natural selection might bring about new kinds of individuals, whose evolutionary dynamics takes place in a novel way. Using a categorization proposed by Godfrey-Smith (2009), this transition is fully accomplished when a new ‘paradigmatic’ Darwinian population emerges. In this paper I investigate whether, at some point in the evolution in the hominin lineage, a transition of this kind might have happened by assuming some of the theses of dual inheritance theory, especially about the role played by a conformist bias. I argue that Godfrey-Smith misses, in his book, a scenario in which conformism is one of the preconditions for a transition towards a Darwinian population of cultural groups.”[27]
Entro agora em mais detalhes sobre como tratei essa questão.
Godfrey-Smith propôs, em seu livro, uma representação de diferentes tipos de ‘populações darwinianas’ usando várias dimensões (parâmetros) em um hiperespaço, que permitem não só distinguir populações ‘paradigmáticas’ de populações ‘marginais’ mas também trajetórias que levam de uma população a outra. Transições em individualidade podem, nessa descrição, ser representadas por trajetórias ligando um tipo de população paradigmática a outro tipo.[28]
Minha questão pode, portanto, ser colocada nos seguintes termos: haveria uma trajetória ligando uma população paradigmática de agentes culturais a uma (meta-)população paradigmática de grupos culturais? Essa questão vincula-se, diretamente, ao tópico que vinha pesquisando, sobre as condições nas quais evoluiu a colaboração em grandes grupos humanos, com seus pré-requisitos cognitivos.
A hipótese que passei a articular foi a seguinte: essa evolução poderia, em princípio, corresponder a uma trajetória na qual os membros dos grupos humanos tornam-se uma população darwiniana marginal (com valores baixos para parâmetros como o que quantifica a variação entre eles) e, simultaneamente, emerge uma (meta-)população darwiniana paradigmática de grupos culturais coesos e com grande variação fenotípica (cultural, no caso) entre eles. Como disse anteriormente, Godfrey-Smith não explora isso no capítulo 8 do seu livro de 2009, embora os capítulos anteriores abrissem, a meu ver, essa possibilidade.
Não conseguiria expor melhor a minha hipótese de trabalho do que no artigo, já referido, que publiquei na Revista Aurora. Permito-me citá-lo longamente:
“… quando o comportamento de um agente num grupo é marcado pelo conformismo, ele promove a cooperação e abstém-se de subvertê-la, abrindo mão de ganhos imediatos na sua aptidão para favorecer a aptidão do grupo como um todo. Essa análise é um forte indício, a meu ver, de que [uma população de grupos culturais] pode constituir uma população paradigmática, resultado de uma transição em individualidade. Não basta descrevê-la dessa forma, e situá-la no hiperespaço: é preciso investigar, também, os processos causais que poderiam ter sido responsáveis por essa transição, tópico a que estou me dedicando no momento. Vimos que teorias como a proposta por Richerson e Boyd destacam a evolução, nessa linhagem, de uma nova modalidade de herança e pressupõem que a seleção no nível dos grupos culturais humanos é suficientemente forte e fator irredutível na emergência da cooperação em larga escala.”
A questão da herança cultural e das condições para que a seleção ocorra no nível dos grupos culturais é, portanto, crucial para articular essa hipótese. Foram esses tópicos que viria a aprofundar no artigo que publiquei, em 2013, no periódico espanhol Contrastes.
Desenvolvi um pouco mais essas idéias durante o meu estágio sênior no Institut d’Histoire et de Philosophie des Sciences et des Techniques (IHPST) em Paris, entre agosto de 2012 e fevereiro de 2013. Lá pude trabalhar as hipóteses lançadas em Abrantes (2011e), que adquiriram uma feição mais madura no artigo supracitado de Contrastes (Abrantes, 2013a). Escrevi este artigo em inglês para ser apresentado no congresso que fundou a Associação Ibero-Americana de Filosofia da Biologia (AIFBI) em Valencia, Espanha. Eu estava, no período, fazendo o estágio sênior no IHPST.
Nesse artigo, contextualizo o livro de Godfrey-Smith de 2009 na literatura sobre transições em individualidade, e pressuponho a exposição que havia feito em Abrantes (2011e) da representação multi-dimensional que ele propõe para tipos de populações darwinianas.
Godfrey-Smith argumenta que não há uma noção clara de reprodução que se aplique a grupos culturais e que, portanto, estes não podem ser considerados indivíduos em um sentido biológico-evolutivo do termo. Eu volto a explicitar, como fizera em 2011, que isso me envolve com uma temática propriamente metafísica:
“I should emphasize straight away that I am not here concerned with a methodological project, namely, that of appraising how fruitful might be the application of biological models to explain cultural dynamics. I am pursuing, rather, a program in the philosophy of nature: how do humans, and culture specifically, fit into our picture of other well-known [transitions in individuality]?”[29]
No artigo-síntese que escrevi para o número especial sobre filosofia da biologia da Revista Aurora (Abrantes, 2013b) ressalto, também, as implicações metafísicas desse trabalho: “Em que medida, [a noção de indivíduo] pode aplicar-se, de modo apropriado e fértil, a grupos culturais?”. Retomei isso, mais recentemente, em Abrantes (2018a).
Em outra publicação (Abrantes, 2013a) faço menção a um artigo posterior de Godfrey-Smith, datado de 2012, onde o filósofo australiano mantém-se avesso a enveredar por essa via metafísica (a despeito de ser autorizada por seu livro de 2009, como já indiquei, e essa via ser empreendida por autores que ele mesmo cita em seu artigo).[30]
Voltando ao argumento central do meu artigo em Contrastes, a teoria sobre a evolução humana proposta por Richerson e Boyd pressupõe que a seleção no nível do grupo teve um papel indispensável nesse processo. A emergência de um novo sistema de herança, a herança cultural, atuando em paralelo com a herança genética, permitiu que a seleção nesse nível tivesse intensidade suficiente para afetar o processo evolutivo (há consenso entre os biólogos que isso não se dá em outras espécies).
Nesse artigo envolvi-me com o problema conceitual de distinguir diferentes tipos de seleção em múltiplos níveis, que vem sendo enfrentado por filósofos da biologia.[31] Essa discussão requer que se articule um conceito de reprodução que possa ser aplicado em cada um dos níveis de seleção. Godfrey-Smith impõe critérios mais rígidos que os adotados por Richerson e Boyd para que se possa afirmar que um determinado indivíduo se reproduz. A aplicação desses critérios torna insustentável cogitar que grupos culturais ‘reproduzem-se’, eliminando a possibilidade de que a seleção atue no nível desses grupos. Na minha interpretação, este foi o motivo pelo qual Godfrey-Smith não considerou, sequer, a possibilidade de que grupos culturais componham uma (meta-)população darwiniana paradigmática. Isso o impede, consequentemente, de vislumbrar uma (possível) transição em individualidade que pudesse ter ocorrido na linhagem hominínea. Para sustentar essa interpretação, cito no artigo de 2013 um trecho do livro de Godfrey-Smith que me parece significativo:
“In this book I treat Darwinian processes involving growth and persistence without reproduction as marginal cases (…) So ‘cultural group selection’ of a significant kind requires differential reproduction, not just differential persistence, even though the border between these is vague”.[32]
Ele não deixa dúvidas a respeito das condições que considera necessárias para que a seleção atue no nível de uma população darwiniana de grupos: “…estes têm que variar, reproduzir-se e herdar características de outros grupos” (2009, p. 118-9).
Por algum tempo impus-me a tarefa de conceber modalidades de reprodução (e de aptidão biológica) que pudessem ser atribuídas a grupos culturais humanos, e especulei sobre o papel que a seleção de grupo (em suas diversas modalidades) pudesse ter desempenhado numa possível transição em individualidade, e que teria redundado na emergência de grupos culturais coesos com propriedades (ontológicas, portanto) de indivíduos biológicos.
Apresentei minhas conjecturas a respeito em palestras (particularmente, na que dei no IHPST durante o meu estágio sênior, mencionado acima), e as discuto, sistematicamente, no artigo supra-citado de 2013. Essa é uma investigação que está em aberto, e que requer trabalho árduo, ao mesmo tempo de natureza conceitual e empírica. Com respeito à dimensão empírica, para se poder avançar nesse caminho é preciso dispor de informações sobre demografia e migração de grupos humanos, bem como sobre sua interação (se conflituosa ou não, por exemplo) durante o Pleistoceno. Dados a esse respeito são, reconhecidamente, difíceis de obter e sempre poderão ser contestados, sobretudo em se tratando de um período tão remoto no tempo.