Paulo Abrantes - Filosofia

Síntese

Em mais de trinta anos de carreira dei vazão a uma ampla gama de interesses que me levaram a trabalhar em diferentes áreas da filosofia: a filosofia da ciência (e, mais recentemente, a filosofia da biologia), a teoria do conhecimento e a filosofia da mente. A essa pesquisa acrescento a que fiz como historiador da ciência e que, como tentei mostrar neste Memorial, sempre esteve em diálogo com o meu trabalho em filosofia da ciência. Nesse diálogo, percebo a continuidade do meu interesse pela descoberta científica e pela metodologia- particularmente pela modelagem analógica e pela simulação nas ciências.

O leitor dessas linhas pode entender que, ao longo dessa trajetória, a ciência foi um objeto privilegiado de reflexão filosófica. Do meu ponto de vista, isso não seria totalmente acurado, contudo, pois a ciência não foi somente um objeto de reflexão: o conhecimento produzido em diversas ciências participou, de forma intrínseca, da reflexão que desenvolvi sobre diversos tópicos, o que reflete uma postura metafilosófica naturalista.[34] Percebo o naturalismo, retrospectivamente, como um dos elementos integradores, de caráter metafilosófico, do meu trabalho como filósofo. Entendo que uma orientação naturalista traduz-se, minimamente, por uma abertura para o conhecimento científico (em diversas áreas), na medida da sua relevância para o encaminhamento, e a possível solução, dos problemas filosóficos em tela.

A questão da inserção do mental no mundo físico é uma das que privilegiei ao longo desse percurso, e o modo como a abordei, em certas fases da minha pesquisa, reflete uma postura naturalista. Ao mesmo tempo que lidei com esse tópico de um modo tradicional- como o problema mente-corpo é, usualmente, tratado em filosofia da mente-, o fiz enquadrando este problema no âmbito da evolução humana, tomando de empréstimo instrumentos conceituais da biologia e das ciências cognitivas.

Contudo, seria um grande equívoco, como alertei em várias publicações, confundir o naturalismo com o cientificismo, que retira da filosofia sua agenda própria ou lhe negue autonomia no cumprimento dessa agenda. Avalio que, nesse trabalho de pesquisa, a filosofia desempenha, frequentemente, um papel integrador, aproximando não somente diferentes áreas da investigação científica mas também garantindo espaço para concepções de senso comum- no caso específico, a respeito do que seria característico da mente humana e, de modo mais amplo, do lugar que ocupamos na Natureza, de modo a compor um quadro unificado de mundo.

Isso pode ser ilustrado pela minha pesquisa recente sobre evolução humana, em que a perspectiva ordinária a respeito do que seria característico da condição humana, e da nossa inserção no mundo animal, é respeitada e incorporada no modo como a filosofia e as ciências sociais afirmam o lugar sui generis que ocupamos na Natureza. Isso não impede que se perca de vista o objetivo de compor um quadro unificado de mundo, o que requer a incorporação das perspectivas adotadas pela biologia e pela psicologia, entre outras ciências naturais.

As ressonâncias desta última passagem, e de outras neste Memorial, com temas em filosofia da natureza que remontam às origens da filosofia ocidental me permitem chamar a atenção para um outro fio condutor da minha pesquisa, que foi se tornando evidente à medida que fui elaborando a presente reconstrução da minha trajetória intelectual.

Visto retrospectivamente, o meu envolvimento com a filosofia da natureza já se encontrava presente nos meus trabalhos em história da ciência do início da minha carreira, onde dei ênfase às imagens de natureza que condicionam o trabalho dos cientistas. Essas imagens desempenham um papel semelhante ao de alguns dos elementos de uma matriz disciplinar, como descritos por Kuhn, ou mesmo ao da metafísica nos programas de pesquisa de Lakatos. Nesse sentido, o meu interesse pela filosofia da natureza já estava latente naquelas pesquisas. Um exemplo disso são os estudos que fiz sobre o teísmo de Newton, em contraste com o deísmo de um Descartes. No foco desta controvérsia estava a questão, mais fundamental, da relação entre mente (espírito) e corpo (natureza), como apontei anteriormente neste Memorial e discuti, aprofundadamente, no capítulo 4 do meu livro Imagens de Natureza, Imagens de Ciência.

Acredito que o meu interesse por essas controvérsias, no âmbito da filosofia da natureza, antecipam o meu engajamento explícito, tempos depois e em um nível mais elevado de abstração, com discussões de metafísica propriamente dita. Isso deu-se nos meus estudos do problema mente-corpo e, mais recentemente, embora de modo marginal, na importância que adquiriu a noção de indivíduo (biológico) nas pesquisas que empreendi sobre transições em individualidade na evolução dos seres vivos. Efetivamente, fiz acima menção explícita à filosofia da natureza quando comentei o artigo publicado, em 2013, no periódico Contrastes.