Paulo Abrantes - Filosofia

Memorial

Este Memorial retraça a minha história acadêmica e não pretende ser exaustivo: seleciono aqueles eventos que avalio como sendo os mais significativos ou representativos da minha trajetória como professor e pesquisador.

Fui por vários anos pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pareceu-me apropriado usar os vários projetos de pesquisa que submeti a essa instituição de fomento para estruturar e fornecer um fio condutor a essa história. Essa escolha também me ajudou a ser o mais fiel possível ao que efetivamente trilhei – respeitando os objetivos que me coloquei nas várias etapas da minha vida acadêmica, as questões que me intrigavam, os métodos e compromissos filosóficos então assumidos. Dessa forma espero ter podido reduzir uma (de todo, inevitável) ilusão retrospectiva. Também remeto, como é mais corriqueiro, às publicações que considero mais importantes, do modo como as encaro hoje.

A menção aos projetos de pesquisa submetidos, que são de domínio público, permite também que se possa aferir a eventual distância entre as pretensões anunciadas e o que foi efetivamente alcançado, em especial no que diz respeito às publicações, embora o ensino, as orientações e as palestras apresentadas também sejam produções que permitem aquilatar, mesmo que indiretamente, a pesquisa realizada.

Embora tenha seguido, neste Memorial, uma ordem cronológica na apresentação das minhas atividades acadêmicas, também tentei organizá-las por grandes áreas e temas, o que por vezes implica em desvios de uma linearidade temporal.

Uma última observação preliminar: dei mais espaço aos tópicos com que venho trabalhando mais recentemente. Acredito que esta seja uma opção razoável, não somente porque eles refletem, a meu ver, maior maturidade intelectual mas, também, porque são aqueles com que estou mais comprometido no momento.

Seções:

História e Filosofia da Ciência

Sou graduado em física (1970-73) e cheguei à filosofia por me ter deixado seduzir, quando ainda jovem, por questões conceituais naquela área. Um pouco mais tarde, somou-se a isso uma preocupação com o modo como as ciências são ensinadas.

Nos anos em que lecionei física no ensino médio, comecei a alimentar a ideia de que se deveria tentar explicitar, comparar e criticar as diversas imagens de ciência[1] veiculadas, em geral de forma sub-reptícia, pelos manuais, e que condicionam os objetivos e os métodos de ensino empregados pelos professores[2]. Isso antecedeu, em vários anos, a minha leitura de T. Kuhn que, como se sabe, manifesta uma preocupação análoga na ‘Introdução’ do seu livro A estrutura das revoluções científicas. Achava eu que o emprego, no ensino de ciências, de estudos de caso em história da ciência, ou mesmo de discussões em filosofia da ciência, poderia contribuir para uma crítica de tais imagens. 

Com esse espírito elaborei, em 1975, um projeto de pesquisa visando a utilizar a história e a filosofia da ciência no ensino de ciências (particularmente, no ensino da teoria da relatividade restrita) com o qual ganhei uma bolsa do governo francês. À época, eu era professor de física no ensino médio, em uma escola pública da periferia de Brasília, na então chamada Fundação Educacional do Distrito Federal.

Na França, fiz um mestrado (maîtrise) com o Prof. Jacques Merleau-Ponty, então no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris X (Nanterre), que havia recomendado o meu projeto para a concessão da bolsa. O Prof. Jacques Merleau-Ponty, falecido em 2002, era conhecido por seus trabalhos em história da cosmologia e em epistemologia. Embora em um dos capítulos da minha dissertação, defendida em 1978, faça propostas concretas para o ensino da teoria da relatividade restrita, dedico grande parte dela a uma discussão da filosofia da ciência de Popper, e ao confronto desta filosofia com o historicismo kuhniano. Também analiso, na dissertação, como os trabalhos de Feyerabend e de Lakatos, entre outros, refletem e desenvolvem os pontos principais do embate entre Popper e Kuhn.

Lakatos viria a exercer uma grande, e duradoura, influência sobre as minhas escolhas e orientações de pesquisa: a sua ‘metodologia de programas de pesquisa científica’ pareceu-me um avanço com respeito às metodologias falseacionistas articuladas anteriormente. Admirei, também, a sofisticação das suas análises sobre as relações entre história e filosofia da ciência, embora pressuponham um racionalismo exacerbado em detrimento dos caminhos efetivos do trabalho científico, o que veio a me incomodar posteriormente.

A noção lakatosiana de ‘programa de pesquisa científica’ é, sem dúvida, uma grande contribuição para melhor compreendermos o trabalho científico; mas não é aceitável ver o trabalho do historiador da ciência como o de propor uma reconstrução racional do passado, relegando para um segundo plano, como meras anomalias, os supostos desvios cometidos pelo cientista com respeito aos padrões de racionalidade estipulados pelo filósofo. L. Laudan tem uma concepção mais adequada, no meu entendimento, do objeto da pesquisa historiográfica, ao menos para um historiador que seja sensível à dimensão filosófica da atividade científica, como indicarei adiante.  

A primeira palestra que dei no Brasil, quando ainda era estudante de pós-graduação, foi em 1978 no Departamento de Filosofia da UnB, com o título “História e Filosofia da Ciência em Lakatos”.

Desde essa época, acompanhei de perto as discussões, brevemente aventadas acima, envolvendo a metodologia da pesquisa historiográfica, e interessei-me pela interdependência entre a pesquisa empírica- que é a do historiador da ciência, com seus objetivos tanto descritivos quanto explicativos-, e a perspectiva predominantemente normativa do filósofo da ciência. A minha preocupação com a metodologia do trabalho historiográfico (não somente o que toma a ciência como seu objeto, mas também a própria filosofia) foi muito aguçada nesse período, e se manteve desde então.

Voltando ao trabalho que resultou na minha dissertação de mestrado, o contato que tive com as ideias de Kuhn, no final dos anos 1970, foi também determinante para o curso que tomaria a minha pesquisa de doutoramento. Já me sentia desconfortável, à época, com as idealizações a respeito da ciência concebidas pelos filósofos, e busquei maior contato com a pesquisa científica real, em seu desenrolar histórico, o que me tornou mais receptivo aos historicistas e me distanciou dos popperianos (e, mesmo, das reconstruções racionais da história da ciência que Lakatos pregava, e que tanto me haviam estimulado). A filosofia da ciência dos empiristas lógicos, de caráter predominantemente a-histórico, também me pareceu limitada para compreender a atividade científica.

A perspectiva de estudar as condições históricas e os pressupostos filosóficos que constituíram o pano de fundo da proposta revolucionária da teoria da relatividade por Einstein, atraía-me desde a época de estudante de física na Universidade de Brasília. Tendo em vista atender às exigências para a obtenção do Diplôme d’Études Approfondies (DEA), que correspondia ao primeiro ano do doutorado (de troisième cycle) francês, tive a oportunidade de escrever uma dissertação sobre ‘as teorias do éter no séc. XIX e a emergência da teoria da relatividade’.

Defendi a minha dissertação de DEA e retornei, imediatamente, ao Brasil pois a minha bolsa de estudos do governo francês havia expirado. Fui admitido na pós-graduação em filosofia da Universidade de Campinas (UNICAMP) em 1980, e passei a cursar as disciplinas exigidas. O Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) era, à época, o lugar mais ativo no Brasil nas áreas de meu interesse. Marcaram-me, de modo particular, os cursos que fiz com o saudoso Prof. Gérard Lebrun, pela sua sutileza e rigor enquanto historiador da filosofia. Lembro-me que assisti ao seu curso sobre a história do positivismo, e a outro, sobre Kant e Hume.[3] A meticulosidade do seu trabalho como historiador das ideias influenciou, certamente, o que eu faria no futuro, voltado para a história das ideias científicas.

Embora tivesse obtido todos os créditos exigidos, não concluí a pós-graduação em filosofia na UNICAMP pois lá não havia, naquela época, quem pudesse me orientar na área de história da ciência. O apoio do Prof. Oswaldo Porchat foi crucial para que eu pudesse retomar o meu doutorado na França, agora com o apoio do CNPq.

O período em que permaneci na UNICAMP foi muito importante, não só para a minha formação mas também por ter propiciado minha inserção na comunidade filosófica brasileira (até então, os meus contatos no Brasil se restringiam à comunidade de físicos e de educadores). Vários dos colegas que faziam comigo a pós-graduação no CLE tornaram-se destacados professores em universidades brasileiras, e desempenharam um papel institucional relevante para o crescimento que teve aa filosofia brasileira desde então.

Regressei à França no segundo semestre de 1981. O doutoramento marcou o meu total envolvimento com a pesquisa historiográfica, com tudo o que isso implica no tocante ao manejo das fontes primárias sobre as quais me debrucei durante anos, sobretudo na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca da Sorbonne.[4]

A leitura do clássico de Pierre Duhem, La Théorie Physique: son objet, sa structure, que acabara de ser republicado na França em sua terceira edição– após esse filósofo ter sido, praticamente, esquecido naquele país por décadas-, sugeriu-me o problema central da minha pesquisa. Duhem, como é sabido, foi um duro crítico do uso de modelos mecânicos no que ele denominava, com algum sarcasmo, a ‘física inglesa’. J. C. Maxwell era o seu principal alvo. Tive, então, a ideia de estudar a recepção na França das teorias do físico escocês. Iniciei, a partir daí, um estudo da transmissão de ciência entre comunidades que, eu viria a comprovar com a pesquisa, assumiam diferentes imagens de ciência (métodos, valores cognitivos, etc.) e, mesmo, diferentes imagens de natureza.[5]

O choque das imagens que prevaleciam em cada uma das comunidades explicaria- essa era a minha hipótese de trabalho- a resistência às teorias de Maxwell e o atraso da sua recepção no continente europeu, em especial na França. A defesa da minha tese de doutorado em filosofia foi em 1985, no prédio histórico da Sorbonne.

Voltei ao Brasil logo após a defesa e me vinculei, no segundo semestre de 1985, ao Departamento de Filosofia da PUCRJ, com uma bolsa de recém-doutor do CNPq. Lá permaneci até 1986, quando fui convidado pela UnB para atuar como professor visitante. Além do meu trabalho como docente, organizei no Rio de Janeiro vários encontros de história da ciência reunindo pesquisadores de diferentes instituições que trabalhavam nessa área, mas de forma isolada. Naquele ano dei palestras em várias instituições sobre tópicos que abordo na minha tese: no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Departamento de Física da USP, na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Federal Fluminense. 

A pesquisa que havia realizado no doutorado está na origem de um dos meus principais pontos de interesse em filosofia (geral) da ciência: o emprego de modelos e de analogias na construção das teorias científicas. O trabalho de Maxwell é, sem dúvida, muito rico nesse tocante. Depois foi ficando claro que o que me instigava era algo mais geral: os métodos envolvidos na descoberta científica.

O historiador da ciência é um pesquisador voltado, evidentemente, para a descoberta científica- para os caminhos da imaginação científica (expressão usada por G. Holton). Contudo, o filósofo contemporâneo da ciência, particularmente aquele formado na tradição do empirismo lógico, considera essa temática completamente estranha à sua área. Esta é uma das heranças da famigerada clivagem entre os chamados ‘contexto de descoberta’ e ‘contexto de justificação’. O meu trabalho como historiador impediu que eu assumisse acriticamente, como filósofo, o que era então um autêntico dogma da filosofia da ciência de tradição anglo-saxônica.

Aproveito para ressaltar o contraste entre uma postura a-histórica, e aquela pregada pela tradição francesa da épistémologie historique (ou, equivalentemente, da histoire épistémologique). Tive muito contato, à época, com os trabalhos de G. Bachelard e de G. Canguilhem, e perguntei-me sobre as origens dessa tradição epistemológica em A. Comte e, posteriormente, nos trabalhos de E. Meyerson, L. Brunschvicg e outros. Não posso deixar, também, de mencionar o profundo impacto que os trabalhos do historiador A. Koyré tiveram sobre mim. Investigo essa tradição de uma história epistemológica e a comparo com a de cepa anglo-saxônica em um artigo de 2002, ao qual voltarei a seguir.

Hoje situo as raízes da minha postura naturalista em filosofia (neste caso, em epistemologia) no trabalho que desenvolvi como historiador: passei a considerar a história da ciência como imprescindível para o trabalho do filósofo da ciência (já que possibilita criticar os seus ideais de ciência). Uma postura naturalista em filosofia da ciência permite, além disso, maior abertura para o estudo da descoberta científica e solapa, em última instância, a dicotomia entre os dois ‘contextos’ a que me referi acima.

Não é menos verdadeiro, e igualmente digno de nota, que essa formação em filosofia da ciência marcou o meu estilo como historiador da ciência. Defendo que uma historiografia da ciência que não seja motivada e orientada por preocupações filosóficas tem escassa relevância (se alguma) para filósofos. É inegável, além do mais, que em muitos períodos não faz sentido distinguir, de forma nítida, a história da ciência da história da filosofia, e que cientistas e filósofos influenciaram-se mutuamente (quando ciência e filosofia não constituíam facetas inextricáveis do trabalho de um mesmo pensador, como é o caso de Descartes, de Leibniz, de Duhem e de tantos outros).

O título do livro que publiquei em 1998, Imagens de natureza, Imagens de ciência [6], já indica o que entendo por uma historiografia filosoficamente orientada da ciência: aquela que elabora reconstruções do passado atentas para os pressupostos filosóficos da pesquisa científica- tanto metafísicos (imagens de natureza) quanto epistemológicos e metodológicos (imagens de ciência). Esta é vista como o desenvolvimento de tradições de pesquisa plasmadas, em grande medida, por tais pressupostos. A despeito do seu racionalismo exacerbado, a noção de um “programa de pesquisas científicas”, proposta por Lakatos, captura bem, a meu ver, esse caráter da atividade científica, que se evidencia nas reconstruções de um historiador que seja sensível à dimensão filosófica daquela atividade.

O livro de 1998 reúne duas décadas das minhas pesquisas em história da ciência, com estudos de caso que abrangem um período que se estende da Antiguidade até o séc. XIX. Uma segunda edição, revista e bastante ampliada, foi publicada em 2016.

Na ‘Introdução’ desse livro, tento colocar em evidência a sua unidade, não só no que diz respeito às temáticas abordadas em diferentes momentos, mas também ao seu fio condutor filosófico. Defino, aí, as noções de imagem de natureza e de imagem de ciência, que funcionam como instrumentos metodológicos nas reconstruções históricas apresentadas. Tento defender, além disso, que essas imagens condicionam-se mutuamente e ofereço evidências disso em vários estudos de caso. Dessa maneira, o livro também delineia um modelo para a dinâmica do conhecimento científico, embora este não seja o seu objetivo central.

O livro Imagens incorpora partes das pesquisas que havia feito no meu doutorado sobre a(s) teoria(s) eletromagnética(s) de Maxwell e sua recepção na França. Um tópico que percorre vários dos estudos de caso apresentados é, efetivamente, o da transmissão da ação física. Diferentes concepções a respeito da transmissão da ação (transmissão à distância, ou de modo contíguo) integram diferentes imagens de natureza e constituem chaves para se compreender a história da noção de ‘campo’, que foi introduzida por Maxwell no séc. XIX.

Com base nesses estudos de caso contesto que o chamado ‘mecanicismo’ tenha sido a imagem hegemônica de natureza ao longo do séc. XVII, como é comum se afirmar. Argumento, ademais, que o dinamismo já era uma imagem de natureza bastante influente no séc. XVII, e foi compartilhada por cientistas tão diferentes e distanciados no tempo quanto Newton e Faraday.

Gostaria de destacar o capítulo 3 do livro Imagens, que resultou de uma extensa pesquisa que empreendi sobre as obras publicadas durante a vida de Newton, e também sobre os seus textos póstumos e a sua correspondência a respeito das especulações que arriscou fazer sobre a existência de um éter permeando o universo. Elas estão, no eminente filósofo natural britânico, diretamente associadas às suas concepções teístas sobre a relação entre Deus e Natureza. Essas concepções vão de encontro às de Descartes, que era um deísta. Essas tensões se refletem, por sua vez, nas distintas posições que esses dois gigantes do séc. XVII defendiam sobre a relação mente-corpo. A correspondência entre Leibniz e Clarke (discípulo e porta-voz de Newton) é uma peça fundamental para o estudo dessa controvérsia filosófica, que pautou muito do que se fez em filosofia da natureza ao longo do séc. XVIII, e mesmo além.

A segunda edição do livro Imagens de natureza, Imagens de ciência, publicada em 2016, inclui dois capítulos relativos à constituição da biologia como ciência nos sécs. XVIII e XIX, sendo um deles totalmente dedicado a Darwin. Pesquisei esses temas mais detidamente após passar a lecionar a disciplina história da biologia no Instituto de Ciências Biológicas da UnB (volto a isso adiante).[7]

Quero também mencionar, de passagem, um artigo que escrevi sobre a filosofia da ciência de Hertz e que foi incorporado, com modificações, na segunda edição do livro Imagens. Este artigo integrou uma coletânea dedicada à ciência do séc. XIX, publicada em 1992. Acho importante mencionar esse trabalho não somente pela sofisticação da filosofia de Hertz mas também pela influência que exerceu sobre filósofos do séc. XX (como Wittgenstein e os membros do Círculo de Viena). Nesse capítulo, relaciono o trabalho científico de Hertz, particularmente o seu trabalho experimental, e a sua filosofia da ciência. Algo semelhante fiz com Duhem, Poincaré e Maxwell na minha tese de doutorado, embora este último não tenha, como os dois primeiros, uma filosofia minimamente desenvolvida, sistemática e explícita.

A filosofia de Duhem, como exemplo de mais um cientista-filósofo do séc. XIX, foi objeto do meu artigo ‘Ciência, Epistemologia e História em Pierre Duhem’, publicado em 1989. Nesse artigo relaciono as três vertentes da prolífica atividade desse grande pesquisador, que também fez um trabalho monumental como historiador da ciência, mas que só foi plenamente resgatado nas últimas décadas do séc. XX. .

Todos esses estudos traduzem a minha persistente inquietação com as relações entre ciência e filosofia.

No artigo ‘Problemas metodológicos em historiografia da ciência’, publicado em 2002 e elaborado a partir de um texto que havia escrito, muitos anos antes, para uso nas minhas aulas, analiso detidamente as relações entre história e filosofia da ciência em diferentes correntes da filosofia contemporânea: tanto as de cepa francesa quanto anglo-saxônica. As questões de método no trabalho do historiador da ciência sempre me instigaram e decidi incluir uma versão atualizada deste artigo nas “Considerações metodológicas finais” da segunda edição de Imagens. A minha pesquisa em história da ciência, propriamente dita, declinou significativamente em seguida, embora tenha continuado a lecionar essa disciplina. Dediquei-me a um trabalho mais sistemático e menos histórico- uma distinção frequentemente usada por filósofos-, embora tenha voltado a me interessar pela história da biologia depois de ter passado a lecionar no Instituto de Ciências Biológicas.

Naturalismo em metafilosofia

O meu trabalho filosófico tem sido marcado por uma orientação naturalista, desde as pesquisas que fiz inicialmente em história da ciência e, mais tarde, de modo mais consciente. Eu diria que essa orientação já havia sido despertada pelo contato que tive com filósofos da ciência historicistas durante o mestrado, como apontei anteriormente. O historicismo em filosofia da ciência pode ser considerado como um tipo de naturalismo. Defendi isso no artigo ‘Naturalizando a epistemologia’, que integra a coletânea Epistemologia e Cognição por mim organizada (que reúne os trabalhos apresentados no Simpósio, com o mesmo título, que organizei na UnB em 1992).[8]

Se tivesse que apontar filósofos e textos que me influenciaram de modo especial desde a época do Simpósio, no sentido de uma postura em metafilosofia, eu destacaria Quine, nos seus clássicos ‘Os dois dogmas do empirismo’ (1961) e ‘Epistemologia naturalizada’ (1987a). Os trabalhos de Dennett (1986), Paul Churchland (1979, 1992), Thagard (1988), Giere (1985, 1988, 1991), Kornblith (1987) e A. Goldman (1985a, 1985b, 1986) também foram de grande importância para eu definir uma postura naturalista. O artigo ‘The naturalists return’ de Philip Kitcher (um filósofo da biologia), publicado em 1992 em The Philosophical Review, ajudou-me muito, pela  sua abrangência, a mapear o campo naturalista.

Em diversas oportunidades, detive-me em esclarecer o naturalismo enquanto orientação metafilosófica e em distinguir suas diversas variantes (já que não há uma, mas várias orientações naturalistas). Além do artigo de 1992, já mencionado, editei em 1998 um número especial dos Cadernos de História e de Filosofia da Ciência (UNICAMP) dedicado ao naturalismo epistemológico, que contém uma introdução minha sobre o tema. Eu e o meu então colega no Departamento de Filosofia da UnB, Hilan Bensusan, publicamos em 2003 uma série de cartas que trocamos em torno do(s) naturalismo(s) em metafilosofia (seguindo o modelo de uma disputatio): eu me coloco na posição de um defensor de certas variantes do naturalismo, e ele de um crítico. Escrevi um artigo, publicado em 2004, sobre o ‘Naturalismo em filosofia da mente’ em que aplico, a esta área da filosofia, a categorização proposta por A. Goldman (1994) de diferentes tipos de naturalismo em epistemologia. Fiquei bastante satisfeito com o resultado da extensão, para a filosofia da mente, de um debate metafilosófico que estava restrito, em Goldman, à epistemologia. Ainda em 2004, continuei explorando essa temática no artigo ‘Metafísica e ciência: o caso da filosofia da mente’. Nesse ponto, encerrei (provisoriamente, como transparecerá adiante) o meu envolvimento explícito com discussões em metafilosofia.

Filosofia da ciência: modelos e raciocínio analógico

A pesquisa central que desenvolvi no primeiro pós-doutorado, iniciado em 1994 no Center for Philosophy of Science da Universidade de Pittsburgh (do qual sou um fellow), foi diretamente motivada pela convergência, por um lado, do meu antigo envolvimento com a temática da descoberta científica (no âmbito da metodologia) e, por outro lado, dos meus estudos, posteriores, sobre raciocínio analógico– com atenção especial não só para como esse tipo de raciocínio é abordado em psicologia cognitiva mas também para as tentativas, que vinham sendo feitas em inteligência artificial, para implementá-lo em máquinas (ambas áreas de investigação integram o campo das ciências cognitivas). De fato, é comum considerar-se o raciocínio analógico como importante no processo de construção de hipóteses e de teorias nas ciências. Existe uma longa tradição a esse respeito na filosofia da ciência do séc. XX, que remonta ao livro de N. R. Campbell publicado em 1920. Discuto essa tradição em um artigo que viria a publicar na revista Philosophos em 2004 (ao qual voltarei abaixo).[9]

Lembro-me que no ano anterior à minha ida para o Centro de Pittsburgh, havia estudado intensamente os temas da metáfora e da analogia. Os trabalhos de Black (1962, 1979), Boyd (1979), Gentner (1989) e  Indurkhya (1992), bem como os artigos da coletânea de Vosniadou e Ortony (1989), foram especialmente
relevantes. A leitura do artigo de Marcos Barbosa de Oliveira, que eu havia publicado como organizador na já mencionada Coletânea de 1993, também foi muito útil para introduzir-me na literatura sobre teorias de conceitos. Por intermédio desse artigo tive contato com a concepção teórica sobre conceitos, defendida pela psicóloga E. Rosch, que me pareceu especialmente convincente. Eu também estava relendo, nessa época, M. Hesse (1966), que possui uma obra clássica sobre modelos e analogias na ciência, com a qual já tivera contato desde as pesquisas de doutorado sobre o uso de modelos por Maxwell. 

O meu projeto de pós-doutorado no Centro de Pittsburgh, apoiado pelo CNPq, tinha por título ‘Raciocínio analógico e descoberta científica’ e desenvolveu-se ao longo de dois anos durante os quais pude aprofundar os meus estudos em diversas áreas das chamadas ‘ciências cognitivas’. Na ocasião, tive a oportunidade de assistir ao 17o Congresso da CognitiveScience Society, que ocorreu na Universidade de Pittsburgh em 1995, no qual foram apresentados trabalhos sobre raciocínio analógico, raciocínio baseado em casos, modelos mentais (este por Philipp Johnson-Laird, que apresentou o tópico em pessoa), entre outros.

Esse pós-doutorado me permitiu, além da pesquisa desenvolvida e seus produtos, uma inserção na comunidade internacional de filosofia da ciência. O Centro da Universidade de Pittsburgh é muito ativo, com palestras semanais dadas por filósofos convidados e antigos fellows, de diversos países. Pittsburgh é, de fato, o centro de uma rede de filósofos da ciência espalhados por todo o mundo, que se reúnem periodicamente nas concorridas Quadrienial Fellows Conferences que têm lugar, a cada congresso, em um país diferente. Participei de muitos deles, desde a minha visita pós-doutoral ao Centro. No sétimo desses congressos, ocorrido em Mugla, na Turquia, em 2012, apresentei a minha pesquisa, de que falarei ao final deste Memorial, sobre ‘Cultura e transições em individualidade’.

Resultaram da pesquisa que fiz em Pittsburgh, de imediato, três publicações: ‘Kuhn e a noção de ‘exemplar’’ (1998); ‘Simulação e Realidade’ (1999) e ‘Analogical reasoning and modeling in the sciences’ (1999). Neste último artigo, que tem tido bastante impacto, proponho um modelo para o raciocínio
analógico aplicável à ciência, com base no estudo que fizera da literatura sobre o tema em psicologia e também a que dizia respeito às simulações computacionais desse tipo de raciocínio.

No artigo de 1998, proponho uma releitura da contribuição de Kuhn à filosofia da ciência, em que coloco em evidência as suas reflexões sobre o papel que desempenham os exemplares e a modelagem analógica
na ciência normal. O artigo de 1999 constitui um estudo geral sobre a noção de modelo, em que distingo seus diferentes tipos e abordo a metodologia das simulações no trabalho científico.[10]

Esse meu engajamento em uma pesquisa filosófica explicitamente tributária do conhecimento científico em várias áreas denunciava, por sua vez, um envolvimento, agora não mais meramente propedêutico, por assim dizer, com o naturalismo. Passei, por exemplo, a aplicar à metodologia científica resultados obtidos em diversas ciências cognitivas. Manifestava-se novamente, mas de outra forma, a minha insatisfação com uma filosofia da ciência mais ortodoxa, de cunho formalista e reconstrutivista, que me parecia por demais distante da ciência como é efetivamente praticada.

Metametodologias naturalistas, como o “naturalismo normativo” proposto por Laudan, exerceram seguramente uma significativa influência sobre a orientação naturalista que imprimi à minha pesquisa em filosofia da ciência. Li, em 1990, o seu livro Science and Values e foi, ao lado dos trabalhos de Lakatos e de Kuhn, um dos que marcaram de modo decisivo a minha pesquisa em filosofia da ciência.

Cabem duas ressalvas a respeito da apropriação que fiz da postura naturalista de Laudan. Ele, como sabemos, privilegiou a história da ciência na articulação da sua metametodologia. Mais ou menos na mesma época em que o lia, comecei a ter contato com filósofos que incorporavam, explicitamente, o
conhecimento produzido no âmbito das ciências cognitivas, como Giere, Thagard e Churchland. Por outro lado, a perspectiva normativa- usualmente associada à metodologia e que tanto mobilizou Laudan- não é central ao trabalho que desenvolvi em Pittsburgh.

Por trás da temática do raciocínio analógico, a que lá me dediquei, estava também o meu antigo interesse, que datava da dissertação de DEA, pelo uso de modelos (analógicos) na pesquisa científica. O tema dos modelos continuou sendo objeto das minhas pesquisas em filosofia da ciência. Destaco, em particular, o artigo ‘Models and the Dynamics of Theories’, que publiquei em 2004, agregando
vários anos de estudo a respeito da história da noção de modelo e da sua relação com teorias, na filosofia da ciência do século XX.[11]

A questão do método nas ciências

Menciono várias vezes neste Memorial o livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica, publicado em 2013 (o e-book está disponível em Produções). Ele resultou de um trabalho que se estendeu por muitos anos e que incorporou publicações que vinha fazendo sobre temáticas mais específicas (em especial, a série de publicações em filosofia da ciência que produzi entre 1992 e 2004). Assinalo, de passagem, que a metodologia, como subárea da filosofia da ciência foi, infelizmente, relegada a segundo plano por grande parte da produção filosófica do séc. XX (a despeito da contribuição dos popperianos que entendiam, contudo, de forma por demais estreita, o escopo da metodologia).

A ideia de escrever um livro de filosofia da ciência voltado para temas metodológicos surgiu quando lecionava a disciplina ‘metodologia científica’ nos meus primeiros anos de UnB. Constatei que a esmagadora maioria dos livros publicados no Brasil com este título pouco tinham de filosófico e, de modo especial, não estavam respaldados na literatura especializada em filosofia da ciência. Tampouco havia, naquela época, títulos em português nesta última área, escritos por filósofos da ciência brasileiros, à exceção de um ou outro já bastante antigos.

O meu objetivo foi o de fazer um livro que fosse introdutório e que pudesse ser empregado em cursos de metodologia científica em diferentes áreas e, mesmo, ser lido com proveito por pessoas de fora da Academia. Embora a maior parte do seu conteúdo não esteja relacionado à pesquisa que faço atualmente, aproveito algum material dessa pesquisa para ilustrar determinados tópicos. Por exemplo, faço referência ao uso de modelos matemáticos por Richerson e Boyd no capítulo em que trato desta temática. E o capítulo final do livro incorpora os meus artigos sobre abordagens evolucionistas (ou melhor, selecionistas) do conhecimento científico.

Um retorno à historiografia da ciência

Na preparação da nova edição de Imagens de natureza, Imagens de ciência (2016), tive que retomar o trabalho de historiador do início da minha trajetória acadêmica.

Talvez não por coincidência, assinei nessa época um artigo com Tiago Leal, um ex-orientando, que reedita, por sua vez, meu também antigo interesse por questões pedagógicas ligadas ao ensino de ciências e pelo papel que nele podem desempenhar a história e a filosofia da ciência- que estiveram na origem da trajetória que exponho neste Memorial. Esse artigo, com o título ‘A questão da singularidade humana nas imagens subjacentes ao ensino da evolução humana’, foi publicado em um número especial da revista Acta Scientiae (2014) cujos artigos exploram, justamente, as interfaces entre ciência (em nosso caso, a antropologia biológica), filosofia da ciência (em nosso caso, a filosofia da biologia) e o ensino de biologia. Retomamos, no título mesmo, a noção de ‘imagem’ (de natureza e de ciência), os mesmos conceitos que articulam os ensaios de história da ciência que havia reunido no meu livro de 1998, e que continuam centrais na segunda edição, de 2016.

Filosofia da Mente

O Simpósio que havia organizado em 1992 (e que mencionei logo no início deste Memorial) marcou o despertar do meu interesse pelas ciências cognitivas e, posteriormente, motivou o meu envolvimento com a filosofia da mente.

J. Kim, em uma entrevista que concedeu à revista Ephilosopher[12], em resposta à pergunta de como ele chegou à filosofia da mente, distinguiu dois percursos típicos: a) o daqueles pesquisadores que chegam a essa área a partir de um interesse pelas ciências cognitivas, pela ciência da computação e pela neurobiologia; b) e o percurso daqueles que partem da metafísica. Eu me incluo entre os que fizeram o primeiro percurso. Foi, de fato, posterior o meu interesse direto por questões de metafísica geral, suscitado, na verdade, pelo meu estudo e ensino na área de filosofia da mente.[13] Percebe-se, claramente aliás, um interesse crescente pela metafísica nas últimas décadas, possivelmente como consequência da revalorização das pesquisas em filosofia da mente após a chamada ‘revolução cognitivista’ dos anos 1960-70.

Iniciei um estudo sistemático da literatura em filosofia da mente ainda durante o pós-doutorado em Pittsburgh, paralelamente ao meu tópico pesquisa principal que, como descrevi anteriormente, era outro. Lembro-me que J. McDowell estava oferecendo, na Universidade de Pittsburgh, um curso de graduação em filosofia da mente, e o assisti como ouvinte. Ele adotava a excelente coletânea de D. Rosenthal, The nature of mind, que reúne trabalhos clássicos na área, e os li avidamente. Também estudei, ainda em Pittsburgh, o livro introdutório de J. Kim, Philosophy of Mind, que acabara de ser publicado (1996). Graças a esses estudos, após retornar ao Brasil, em 1996, senti-me em condições de oferecer, regularmente, a disciplina filosofia da mente no curso de graduação do Departamento de Filosofia da UnB, atendendo também a uma demanda de estudantes de outros cursos, como os de computação, de psicologia, etc. O livro de Kim passou a ser a principal referência das notas que elaborei para esses cursos, além dos textos clássicos que havia lido na coletânea de Rosenthal.[14]

Cheguei a publicar alguns artigos em filosofia da mente- que, em seu recorte tradicional, nunca constituiu uma área central das minhas pesquisas, embora tenha tido um grande papel na minha formação como filósofo- e cheguei a orientar dissertações nessa área. Destaco, de modo especial, o artigo ‘Funcionalismo e Causação Mental’, que escrevi com Felipe Amaral nos idos de 2002, meu orientando à época e hoje professor no mesmo Departamento a que estive vinculado. Uma outra orientanda minha, Juliana de Orione, hoje professora na Universidade Estadual da Bahia, fez uma dissertação de graduação, e em seguida um mestrado sob minha orientação, voltado para a temática da consciência.  Temos um artigo publicado sobre esse assunto espinhoso (Fagundes & Abrantes, 2014). Eu e Juliana traduzimos para o português o clássico de T. Nagel, ‘What is it like to be a bat?’. Escrevi uma Introdução a esse artigo, em que me detenho na filosofia de Nagel, situando-a no espectro de posições, na contemporaneidade, sobre o problema mente-corpo. A tradução do artigo de Nagel juntamente com a minha introdução foram publicadas em 2005 nos Cadernos de História e de Filosofia da Ciência da UNICAMP.

Epistemologias evolucionistas

A partir de 1998 abri uma outra frente de pesquisa, aproximando-me agora da biologia. Na minha pesquisa de pós-doutorado, como relatei anteriormente, havia me apropriado de trabalhos produzidos no âmbito das ciências cognitivas).[15]

Há muito me era desconfortável o fato de que a filosofia da ciência que pesquisava e que ensinava era excessivamente marcada pelo modelo da física enquanto ciência. Passei a sentir a necessidade de fazer uma filosofia mais atenta ao problemas específicos de outras ciências, e escolhi a biologia pelas razões que exponho a seguir.

O meu interesse filosófico pela biologia fora indicado na conclusão do meu artigo ‘Naturalizando a epistemologia’, datado de 1993. Aí perguntava-me se as epistemologias evolucionistas poderiam ser consideradas vertentes do programa naturalista em epistemologia.

Em 1998 submeti ao CNPq um projeto de pesquisa com o título ‘A abordagem evolucionista em epistemologia’. Nele cito, justamente, o parágrafo final do artigo de 1993 em que mencionara as epistemologias evolucionistas. É provável que o artigo de Philip Kitcher, bem como a leitura do clássico ‘Natural kinds’ de Quine (1987b), já mencionados neste Memorial em outro contexto, tenham dirigido a minha atenção para esse tópico. Faço também referência, no projeto, ao livro de Dennett, Darwin’s dangerous idea, no qual esse filósofo argumenta que a evolução pode ser vista como um processo algorítmico e, nessa medida, podendo ser instanciado, ou implementado, nos mais diversos substratos.

Eu já tivera contato com as tentativas de Popper de articular uma epistemologia evolucionista (compatível com a sua metodologia falseacionista), sobretudo a partir do seu livro Objective Knowledge, de 1972. Provavelmente por essa via vim a conhecer o artigo ‘Evolutionary epistemology’ de D. T. Campbell, publicado, justamente, na famosa coletânea de Schilpp, The Philosophy of Karl Popper, de 1973.

No projeto que apresentei ao CNPq em 1998, embora reconheça estar fazendo uma inflexão com respeito à minha pesquisa anterior sobre raciocínio analógico- e que se inseria no quadro de uma filosofia geral da ciência-, assim mesmo tento assinalar as continuidades com o que fazia anteriormente. Permito-me citar o trecho relevante do projeto:

“[A teoria darwinista da evolução] tem sido, de fato, uma fonte fértil de metáforas e de analogias para a modelagem dos mais diversos tipos de fenômenos. O caso do conhecimento e do seu desenvolvimento é somente um dos domínios nos quais se tem explorado essa transferência analógica de conceitos e mecanismos evolucionistas.”[16]

Eu já explicitava, nesse projeto, a distinção entre usos metafóricos da linguagem empregada na teoria darwinista da evolução, e seus usos literais. Bradie (1986, 1995) distingue, a propósito, dois programas em epistemologia evolucionista: uma epistemologia evolucionista de mecanismos, de um lado; e uma epistemologia evolucionista de teorias, de outro. Pode-se argumentar que, neste último caso, a apropriação da linguagem biológica ocorre de forma meramente metafórica – envolvendo uma transferência analógica de conceitos-, e, no primeiro caso, aborda-se literalmente a evolução dos sistemas cognitivos.[17]

Ainda no projeto de 1998 incluí entre os usos literais da terminologia biológica o programa de uma psicologia evolucionista, rememorando a Conference on Epistemology & Evolutionary Psychology que ocorreu na Rutgers University em 1995. Esse congresso, que assisti durante o período em que estava fazendo meu pós-doutorado na Universidade de Pittsburgh, causou-me uma impressão forte pois reuniu filósofos, psicólogos e antropólogos da estatura de R. L.Trivers, J. Tooby, E. Sober, D. Papineau, D. Sperber, além do próprio S. Stich, que foi o organizador do evento. Só muito depois, quando passei a trabalhar com filosofia da biologia e com evolução humana, dei-me conta que estavam presentes no congresso pesquisadores desse quilate (eu só conhecia, naquela época, os trabalhos de Stich)!

A noção de ‘meme’, introduzida por Dawkins, já transparece no projeto de 1998, o que indica que eu estava atento a propostas de se aplicar o ‘algoritmo’ evolucionista (selecionista) à própria cultura, e não só à mente, como na psicologia evolucionista. É significativo, do ponto de vista do meu trabalho posterior, que o livro de Hull, Science as a Process (1998) apareça na bibliografia do projeto apresentado. Nesse livro, Hull vê a própria prática científica, em sua dimensão social (a comunidade científica), como passível de ser explicada através de um esquema conceitual selecionista.

Acho importante mencionar aqui esses detalhes do projeto de 1998 porque, de certa forma, nele se prenuncia muito do que eu vim a fazer depois, mesmo que isso ainda não estivesse totalmente consciente, ou explícito, naquele momento. O fato é que me foi concedida a bolsa e dirigi a pesquisa para essa nova direção. Preliminarmente, iniciei um estudo de filosofia da biologia, adotando a coletânea de Sober, de 1995, que continua sendo uma referência importante na área. Da posição em que me encontro hoje, décadas depois, consigo avaliar que o projeto apresentado ao CNPq era por demais ambicioso, embora eu tenha, judiciosamente, explicitado as várias etapas da sua execução. Não poderia saber que eu as estaria galgando, de certa forma, até hoje!

Em 2000-2001 apresentei uma série de palestras, no Brasil e no exterior, sobre o tema das epistemologias evolucionistas. Essa pesquisa resultou num artigo publicado em 2004, e que ganhou uma versão em espanhol em 2007.

Para não perder a linha do tempo, abro aqui um parênteses e registro que participei da reunião na qual foi criado o GT de Filosofia da Ciência da ANPOF, ocorrida na UFMG em junho de 2001, e que envolveu um pequeno grupo de pesquisadores. Participei, assiduamente, das reuniões desse GT, um dos fóruns nos quais apresentei os resultados da minha pesquisa. Tive, também, participações eventuais no GT de Filosofia da Mente da ANPOF.

Em 2000 apresentei um novo projeto de pesquisa ao CNPq com o título ‘Estrutura e âmbito da modalidade evolucionista de explicação’ onde me propunha a ir além das metas fixadas no projeto anterior, que se restringiam ao âmbito da epistemologia. Nesse projeto apresento do seguinte modo a pesquisa que havia desenvolvido até aquele momento:

“No  projeto de pesquisa que apresentei anteriormente ao CNPq [tratava-se do projeto de 1998], examinei tentativas de se aplicar à epistemologia em geral, e à filosofia da ciência em particular, o tipo de explicação baseada no mecanismo evolucionista. Explorei, em especial, a transferência analógica de conceitos, relações, processos, etc. tomando a teoria da evolução como ‘fonte’ da analogia e a teoria do conhecimento como ‘alvo’. Para tanto, servi-me de uma pesquisa, que havia feito anteriormente, sobre a estrutura do raciocínio analógico como ocorre na atividade científica” (Abrantes, 1999).

Na sequência indico o novo objetivo, de aplicar essa modalidade evolucionista de explicação a “…outras áreas da filosofia além da epistemologia (como, por exemplo, a filosofia da mente) e nas ciências (como, por exemplo, mas não exclusivamente, nas ciências cognitivas de um modo geral).” Indico também a necessidade que senti de estudar tópicos em filosofia da biologia, como “… o debate em torno do adaptacionismo, das unidades de seleção, do reducionismo, etc.”

Achei importante ressaltar, no projeto de 2000, que a pesquisa teria um “interesse filosófico mais geral, já que a análise da natureza e estrutura da explicação é um dos tópicos centrais em filosofia da ciência”.

Prossigo fazendo um rápido apanhado das reconstruções propostas pelos empiristas lógicos da estrutura das explicações científicas, apontando para as dificuldades de estendê-las para ciências como a biologia e, em particular, no intuito de responder pelas “explicações envolvendo ‘entidades históricas’ como as espécies orgânicas”. Explicito, também, questões ontológicas a respeito da natureza das entidades históricas: seriam elas indivíduos ou classes? A influência do trabalho de Hull ‘A matter of individuality’, a respeito da natureza das espécies biológicas é bastante clara (embora não o tenha citado na bibliografia do projeto). Não poderia imaginar que voltaria a refletir sobre a noção de indivíduo biológico na pesquisa que faria, muitos anos depois, sobre transições em individualidade na evolução das espécies.

Nesse projeto de 2000 dou, ao mesmo tempo, maior ênfase a discussões em fundamentos da biologia evolutiva. Aí destaco, de modo especial, o problema dos níveis de seleção, que se tornaria crucial na minha pesquisa posterior sobre evolução humana. Também me proponho a explorar “… tentativas de aplicação ‘literal’ dos conceitos e processos evolucionistas à epistemologia, e também a outras áreas, como a filosofia da mente.” Eu continuava, portanto, assumindo a distinção que faz Bradie entre usos metafóricos e literais da linguagem evolucionista, inclinando-me em direção a seus usos literais para abordar problemas em diversas áreas da filosofia.

Ainda insistia, em 2000, na idéia de aplicar um modelo de raciocínio analógico- o que havia desenvolvido durante o meu pós-doutorado (Abrantes, 1999)-, à construção de uma epistemologia selecionista. Ou seja, a aposta era que filósofos, e não só cientistas, empregam o raciocínio analógico: a epistemologia selecionista seria um exemplo disso, podendo ser vista como a instanciação de um tipo de teoria evolutiva no domínio do conhecimento. Embora tenha escrito embriões de artigos nessa direção, a aposta nunca rendeu dividendos e abandonei essa ideia.

Em 2008-9, fui orientador da dissertação de mestrado de Marcos Toscano na qual ele constrói uma versão mais abstrata do mecanismo de seleção natural de modo a poder tratar, em termos selecionistas, da dinâmica tecnológica . Dessa parceria resultou uma dissertação e um artigo, aceito para publicação nos Cadernos de História e Filosofia da Ciência da UNICAMP. Destaco esse trabalho aqui também porque o tópico da evolução[18] tecnológica se insere no âmbito mais amplo da evolução cultural, que viria a estar no centro da minha pesquisa, bastante posterior, sobre evolução humana.

O tema da evolução cultural continuou interessando-me. Fazendo um salto no tempo, registro que fui convidado pelo Prof. Maximiliano Martínez, da Universidad Autónoma Metropolitana do México, para escrever um capítulo sobre ‘evolução cultural’ para o livro  Conceptos de la biología evolutiva para las ciencias sociales y las humanidades, que ainda se encontra no prelo. Esse trabalho me permitiu retomar o que iniciara, décadas atrás, com a orientação do Marcos Toscano. Recentemente, escrevi um artigo mais extenso sobre o tema para um número sobre Filosofia Temática Autoral Brasileira da revista Trans-form-ação. Volto mais adiante, na seção sobre Atividades de pesquisa recentes, a mencionar esse trabalho.

No bojo dessa pesquisa, apresentei em 2016 uma comunicação sobre “Evolução Cultural” para o X Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), que ocorreu em Águas de Lindóia, São Paulo.

Filosofia da biologia

Se tivesse que enquadrar o meu trabalho de pesquisa posterior em alguma área da filosofia, eu escolheria a filosofia da biologia (enquanto subárea da filosofia da ciência). Mas esses enquadramentos são sempre problemáticos e limitam, demasiadamente, o escopo da pesquisa que abrange, na verdade, diferentes áreas da filosofia, como mostrarei a seguir.

O projeto que propus ao CNPq para o período 2003-2006 mantém o mesmo título do projeto de 2000, mas há uma clara mudança de ênfase. Eu me proponho, agora, a explorar “as credenciais das explicações adaptacionistas para a (evolução da) cognição”, e faço uma rápida apresentação dos trabalhos de Sterelny e Godfrey-Smith. O projeto já previa, de fato, a solicitação de uma licença para trabalhar com esses pesquisadores na Austrália, no âmbito de um segundo pós-doutorado. Eu acreditava poder enquadrar essa temática na distinção, que havia analisado no projeto anterior, entre uma epistemologia evolucionista de teorias e uma epistemologia evolucionista de mecanismos. Havia uma intenção explícita, portanto, de fazer um uso literal, e não mais metafórico, da teoria da evolução na exploração de problemas filosóficos, em especial o problema mente-corpo. Isso me levou a adotar, na abordagem deste problema, uma perspectiva diacrônica, e não sincrônica como é mais usual. Estava preocupado em compreender como evoluíram mentes de certos tipos, dadas certas condições ambientais.  

A “tese da complexidade ambiental” proposta por Godfrey-Smith (1998) é destacada no projeto de 2003 por pretender explorar cenários adaptacionistas para a evolução de mentes, em termos da sua função no controle do comportamento de organismos situados em diferentes ambientes. Também tematizo a categorização, proposta por ele, de diferentes posições em filosofia como sendo ‘externalistas’ e ‘internalistas’, o que remete a (cito o projeto) …   

“… dois padrões clássicos de explicação utilizados em diversas ciências e áreas da filosofia, permitindo organizar, num esquema abrangente, antagonismos tradicionais (como os que opõem empiristas a racionalistas, positivistas a construtivistas, realistas a não-realistas, reducionistas a não-reducionistas …)”.

Sterelny é, por sua vez, mencionado por sua proposta de explicar, em termos adaptacionistas, a evolução dos sistemas intencionais. Indico, contudo, que ele adota um adaptacionismo “moderado”, o que permite contemplar a crítica que construtivistas como Lewontin e Gould fizeram aos compromissos filosóficos do programa adaptacionista.

Portanto, o projeto de 2003 direciona, claramente, a minha pesquisa para temas de fundamentos em biologia (em especial os que requerem esclarecimento dos conceitos de adaptação e de função), bem como para uma explicação da origem evolutiva de mentes de diferentes tipos, o que se tornou o foco da pesquisa a partir daí. A expectativa era que o conceito de função biológica, sobretudo, tivesse relevância não somente para análises no âmbito da filosofia da biologia, em particular, e da filosofia da ciência, em geral, mas também no da filosofia da mente. Nesta última área, eu vislumbrava uma articulação mais  satisfatória do funcionalismo como proposta de solução para o problema mente-corpo, que contornasse as dificuldades apontadas pelos  críticos às tentativas feitas, até então, de abordar esse problema segundo um prisma funcionalista. Nesse espírito, Sober defendeu em um artigo de 1985 (republicado em Lycan, 1999) que temos que “colocar a função de volta no funcionalismo”, fazendo menção explícita ao conceito de função biológica.[19]

Também menciono, no projeto de 2003, o artigo que estava escrevendo com o biólogo Charbel N. El-Hani da UFBA, voltado para o tema da individuação de “teorias ou programas científicos, considerados enquanto entidades históricas, com especial atenção para a teoria ou programa darwinista”. O ponto de partida desse artigo é uma polêmica que travaram S. J.  Gould e D. Hull sobre a individuação da teoria darwinista. O que fizemos foi estender as posições defendidas por eles para quaisquer teorias científicas (ampliando, portanto, o escopo da controvérsia para uma filosofia geral da ciência).

Ainda no domínio da filosofia da ciência explicito, no projeto de 2003, o meu objetivo de explorar, na esteira do que fizera Hull, as “implicações metodológicas de uma abordagem selecionista da ciência”.[20]

A pesquisa que vinha fazendo desde 2000 refletiu-se, como é de se esperar, nos cursos que lecionei nesse período na pós-graduação do Departamento de Filosofia. Em 2002, ofereci um curso com o objetivo de “estudar uma das vertentes da epistemologia contemporânea, a epistemologia evolucionista e o programa de um ‘darwinismo universal’ “. Em 2004, ofereci uma disciplina abordando os principais programas em desenvolvimento para explicar a evolução humana: a psicologia evolutiva, a ecologia comportamental humana, a memética e a abordagem de coevolução gene-cultura.

Em 2003 gozei parte da minha licença sabática na condição de pesquisador visitante da Research School of Social Sciences (RSSS) da Universidade Nacional Australiana, onde desenvolvi um projeto de pesquisa com o título ‘Cenários para a evolução da mente humana’. Nessa oportunidade, tive contato mais próximo com as abordagens de K. Sterelny (eu havia lido, ainda no Brasil, uma versão preprint do seu livro Thought in a hostile world, que viria a ser publicado em 2003), e de Godfrey-Smith (2002, 2004) sobre a evolução da cognição e do comportamento humanos.

A importância dessa minha visita à RSSS não pode ser superestimada. Pude trocar idéias com dois dos mais importantes filósofos da biologia em atividade, e as minhas pesquisas voltaram-se, de modo consistente e duradouro, para a interface entre a filosofia da psicologia, especialmente no que diz respeito à estrutura e ao status da psicologia de senso comum (folk psychology) e a filosofia da biologia. Também passei a explorar aplicações de modelos biológicos, em especial evolutivos, à dinâmica científica e, de modo mais amplo, à dinâmica cultural.[21] Desse ponto em diante a minha pesquisa explorou múltiplos aspectos da supracitada interface.

Em julho de 2004 passei a ter uma segunda lotação no Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB, o que deu ainda maior significado à minha pesquisa em filosofia da biologia, que passou a ter como foco o tópico da evolução humana.

No bojo da minha dupla lotação no IB, eu e a bióloga Maria Luíza Gastal criamos as disciplinas ‘História da Biologia’ e ‘Filosofia da Biologia’ (em 2004). Também modificamos a ementa da disciplina ‘Dinâmica da Construção do Conhecimento Científico’, que estava desativada há anos. A partir daquele ano, oferecí regularmente essas disciplinas no curso de graduação em biologia, e que se tornaram também optativas para os alunos do Departamento de Filosofia. Também tive várias participações no curso de ‘Evolução humana’, oferecido na pós-graduação do IB, ao lado das biólogas Nilda Diniz e Silviene Oliveira.   

Nessa época, formei um grupo de discussão em filosofia da biologia composto por alunos que haviam cursado as disciplinas que oferecera no Mestrado em Filosofia, em 2002 e em 2004. Este grupo foi o embrião de um grupo de pesquisas em filosofia da biologia na UnB que foi registrado com o nome ‘Mente, Linguagem e Evolução’ (MELE). A história desse grupo é contada em detalhes, ao lado deste Memorial, em outra página de Memória.

Compatibilismo e evolução humana

Relembro que desde 2000 passei a explorar convergências entre a epistemologia, a filosofia da mente e a filosofia da biologia. A intenção era de tentar estender as possibilidades explicativas do mecanismo darwinista de seleção natural a essas outras áreas. A partir de 2003 e, de forma mais clara, após retornar do meu pós-doutorado na Austrália, avaliei que a vertente mais promissora da minha pesquisa seria o tópico da evolução da mente humana, em que aquelas convergências dar-se-iam, digamos, forçosamente.

Na primeira etapa dessa investigação, ainda sob a influência dos trabalhos de Sterelny e Godfrey-Smith, explorei a aproximação entre, de um lado, as imagens de senso comum a respeito do que nos constitui enquanto pessoas e agentes- imagens pressupostas por grande parte da filosofia e também pelas ciências sociais- e, de outro, imagens que permeiam a biologia e que remetem à nossa natureza animal. O tópico da evolução humana é particularmente adequado para efetivar essa aproximação, já que permite confrontar essas diversas imagens e fazer confluir as pesquisas por elas motivadas.

Tratava-se de uma aposta, portanto, na contribuição que a filosofia pode dar no sentido de integrar a perspectiva adotada pelas ciências sociais a respeito do caráter de agentes humanos, e a perspectiva adotada pela biologia evolutiva que tem por objeto a espécie o Homo sapiens.

Publiquei a esse respeito, em 2006, um artigo na revista Manuscrito, ‘A psicologia de senso comum em cenários para a evolução da mente humana’. Este artigo marcou, efetivamente, a nova orientação que imprimi à pesquisa desde então.

Por algum tempo abordei, em artigos e palestras, o que Sterelny denomina os ‘projetos integradores interno e externo’. Com isso, eu voltava a lidar com uma temática metafilosófica- que havia deixado para trás com a publicação dos meus artigos sobre o naturalismo do final dos anos 1990, como assinalei anteriormente. Espero deixar mais claro, a seguir, a tese de que uma das tarefas centrais da filosofia é a de integrar as concepções de senso comum com as concepções científicas, particularmente no âmbito psicológico.

Além do artigo de 2006 na Manuscrito, já citado, publiquei outros em que essa temática metafilosófica é explicitamente abordada: ‘La imagen filosófica de los agentes humanos y la evolución en el linaje homínido’, em 2010; ‘Human evolution: compatibilist approaches’, em 2011; ‘A esfera do mental: filosofia, ciência e senso comum’, também em 2011; ‘Evolução humana: estudos filosóficos’, em 2013. Este último artigo pretende condensar e articular o que havia publicado até então sobre evolução humana. Posteriormente, apresentei uma síntese ainda mais abrangente de toda a minha pesquisa sobre esse tópico (em Abrantes, 2018a).

Submeti ao CNPq, em 2006, um projeto de pesquisa com um novo título ‘Mente, Cultura e Evolução’. Seus objetivos apontavam numa direção ‘compatibilista’ (embora não usasse o termo à época) na medida em que pretendia integrar as imagens de senso comum e as imagens científicas a respeito da condição humana. Avalio, no projeto, que o tema da evolução humana é particularmente propício para efetivar essa integração:

” … Aposto, portanto, na contribuição que a filosofia pode dar no sentido de integrar ou, pelo menos, de aproximar perspectivas adotadas pelas ciências sociais- a respeito do caráter de agentes humanos -, e perspectivas adotadas pela biologia evolutiva (…) A filosofia e as ciências sociais sempre convergiram no modo como concebem as nossas particularidades enquanto agentes, e a biologia aponta para continuidades em nossa inserção na ‘escala da natureza’- usando aqui uma expressão que possui uma longa história. Deveria haver um maior intercâmbio entre essas perspectivas- visando a um entendimento menos fragmentário e parcial do que somos nós-, mas isso não vem sendo feito de modo sistemático e frutífero.”

Sterelny e Godfrey-Smith argumentam que as nossas “habilidades interpretativas”- ou seja, habilidades para imputar estados mentais com base em alguma versão de uma psicologia de senso comum-, tiveram um papel crucial na evolução humana. Em outros termos, a explicação de como evoluiu uma ‘inteligência social’ associada a tais habilidades para a leitura de mentes (mindreading) é vista como um objetivo inescapável de qualquer teoria que pretenda abordar a evolução da mente humana. Essa teoria teria que explicar não só a evolução de uma intencionalidade de primeira ordem- ou seja, a evolução de sistemas intencionais-, mas também de uma intencionalidade de ordem mais alta, requerida por uma inteligência capaz de lidar com a complexidade do ambiente social.

Por vários anos as minhas leituras e pesquisas foram balizadas pela hipótese de que algo como uma ‘teoria da mente’ (expressão não muito feliz, introduzida por primatólogos), ou, de forma menos equívoca, a capacidade para leitura de mentes, teve um papel crucial na evolução humana: seja para explicar como lidamos cada vez melhor, enquanto indivíduos de uma espécie biológica, com a complexidade social, seja para explicar como nos tornamos melhores aprendizes sociais e exímios imitadores.

Esse interesse pelo “papel que o conhecimento de senso comum, com ênfase na psicologia de senso comum, desempenha na investigação filosófica e nas ciências sociais, e suas implicações para a articulação de uma teoria da evolução humana” levou-me, por sua vez, a estudar os trabalhos de Lynne Baker (1995) e do eminente filósofo argentino Eduardo Rabossi (2004). Dei palestras a esse respeito em várias oportunidades, mas limito-me a destacar a minha participação em uma mesa-redonda organizada em homenagem ao saudoso Eduardo Rabossi no VIII Colóquio Internacional Bariloche de Filosofía, em setembro de 2006. Rabossi havia falecido pouco antes, e essa participação foi muito significativa para mim pois havíamos tido um fértil intercâmbio em várias visitas que fizera à Argentina, a convite dele.

Pode-se perguntar como essa preocupação com a esfera do senso comum pode ser conciliada com uma postura naturalista. Levanto essa questão no artigo que publiquei na Manuscrito em 2006, onde mostro que o naturalismo de um Sterelny, por exemplo, o faz privilegiar, em última instância, o projeto integrador interno (de integrar as ciências sociais e as ciências naturais), deixando em situação precária as intuições com base no senso comum (o contraste, nesse tocante, com Lynne Baker é flagrante).

Filosofia da Biologia e Antropologia

No projeto de 2006 faço menção à teoria da dupla herança que Richerson e Boyd construíram para explicar a evolução humana, e que se mostrou das mais relevantes para a direção que tomaria a minha pesquisa nos anos seguintes. Essa avaliação faço-a da perspectiva privilegiada em que me encontro hoje, mas não antecipava isso à época.

A teoria proposta por esses antropólogos-biológos supõe uma “inextricabilidade entre natureza e cultura, particularmente no caso da evolução humana. As relações são de mão dupla: um processo cultural cumulativo pressupõe certas capacidades cognitivas e, por sua vez, uma cultura sofisticada, resultado daquele processo, implica numa trajetória evolutiva particular para a mente na linhagem hominídea”.

A leitura do livro de Richerson e Boyd, Not by genes alone (2005), que fiz nessa época, lançou uma nova luz sobre os tópicos que vinha estudando nas publicações dos filósofos Sterelny e Godfrey-Smith. Problemas conceituais os quais não havia tratado anteriormente- como os associados à noção de ‘cultura’ e ao papel desempenhado pela aprendizagem social-, passaram a ocupar-me intensamente.

Comparei os pressupostos das várias teorias, atualmente em disputa, sobre a evolução humana- em especial a psicologia evolucionista e as teorias de coevolução gene-cultura (a teoria proposta por Richerson e Boyd insere-se neste último campo). Desde a leitura que fiz de Sterelny, adotei uma postura crítica com respeito à psicologia evolucionista advogada pela escola de Santa Bárbara (sendo J. Tooby, que havia conhecido no congresso da Rutgers University a que me referi acima, o seu representante mais emblemático). Em particular, passei a contestar o pressuposto de que a mente humana seria modular em grande escala. A noção de ‘módulo’, que Fodor havia formulado, é adotada por essa concepção da arquitetura da mente humana:

“A psicologia evolutiva exemplifica uma abordagem inatista com respeito à cognição humana e, em particular, com respeito às nossas habilidades interpretativas. Os psicólogos evolutivos extrapolaram alguns argumentos de Chomsky e de Fodor a favor da existência de módulos para a linguagem e para os mecanismos sensoriais, e passaram a argumentar a favor de uma arquitetura extensamente modular para a mente humana.”

Enquanto a psicologia evolucionista concede um lugar bastante limitado à cultura, a teoria da dupla herança torna a cultura um fator central na evolução humana. O adaptacionismo irrestrito da psicologia evolucionista cede espaço a posições construtivistas, com as quais havia travado contato, sobretudo, a partir do trabalho de Sterelny. A controvérsia que opõe ‘adaptacionistas’ e ‘construtivistas’, tão central em filosofia da biologia, passou a ter uma aplicação imediata, bem como a temática dos níveis de seleção, da existência de modalidades não-genéticas de herança e da construção de nichos, que já vinha estudando sistematicamente desde 1998. De fato, para Richerson e Boyd a evolução humana só pode ser explicada se supusermos que a seleção atua também no nível do grupo, e não só em níveis inferiores (os do organismo e do gene).[22] Uma pré-condição para que a seleção no nível de grupo tenha intensidade é a acumulação cultural o que, por sua vez, pressupõe que a cultura tenha passado a ser, a partir de um certo momento, uma nova modalidade de herança na linhagem hominínea.[23] Para tanto, certas capacidades cognitivas são indispensáveis, em particular a capacidade para ler mentes (mindreading). A minha antiga pretensão de fazer convergir discussões em filosofia da biologia, em filosofia da psicologia e em filosofia da mente começava a se concretizar!

Faço notar, de passagem, que as várias publicações de Richerson e Boyd fazem um uso extensivo da modelagem matemática. Como relatei no início deste Memorial, desde a minha pesquisa de doutorado o uso de modelos nas várias ciências suscitava o meu interesse. Não deixei de aproveitar a oportunidade para explorar, novamente, esse tópico no âmbito da construção, por aqueles antropólogos, da teoria da dupla herança. Publiquei, em 2011, um artigo a esse respeito com o título ‘Methodological issues in the dual inheritance account of human evolution’.[24]

O projeto de pesquisa que propus ao CNPq em 2010 tem por título ‘Cooperação e evolução humana’. Aí começo a articular os temas que passei a privilegiar.

Retrospectivamente, a minha pesquisa desde 1998 pode ser vista como uma longa preparação para lidar com este que é um dos tópicos mais candentes da atualidade, e que tem capitalizado competências em vários domínios: psicologia, antropologia, biologia, arqueologia, paleontologia, para citar somente alguns. Filósofos têm se interessado pelo tema e dado contribuições decisivas no delineamento de cenários plausíveis para a evolução da cooperação.

Inicio o projeto sublinhando que “os diferentes programas que, na atualidade, enfrentam especificamente o problema da cooperação nos grupos humanos, colocam problemas conceituais, metafísicos e metodológicos de grande relevância para o filósofo da biologia.”

A teoria da dupla herança mantém-se a referência principal do projeto:

“Richerson e Boyd partem das diferenças entre as características atuais da espécie humana em comparação com outras espécies, tomadas como evidentes pelo senso comum e que são pressupostas tanto pela filosofia quanto pelas ciências sociais. Levando essas diferenças a sério na construção de cenários para a evolução da nossa espécie, eles propõem-se a construir uma teoria ‘enraizada na melhor ciência social’ (2005, p. 60).”

No resumo que faço ao final do projeto, volto a enfatizar o caráter espécie-específico da evolução humana:

“… a evidente existência de cooperação nas sociedades humanas é uma anomalia no mundo animal, onde só há cooperação em pequena escala (quando os indivíduos não são aparentados geneticamente). O caso humano é o único onde a cooperação se tornou possível em larga escala, e os mecanismos de seleção de parentesco, do altruísmo recíproco e da sanção moral revelam-se insuficientes para explicá-la. De acordo com Richerson e Boyd, a cooperação anômala que se dá no caso humano somente encontra uma explicação plausível em uma abordagem evolutiva que leve em consideração o surgimento de uma outra modalidade de herança, a cultural, ao lado da herança genética.”

Comprometo-me, então, a comparar a abordagem da dupla herança, à época praticamente desconhecida no Brasil, com outras teorias que tinham, e continuam tendo em alguma medida, maior difusão entre nós, particularmente a psicologia evolucionista.

Entre os resultados esperados da pesquisa arrolo, no projeto de 2010, a organização de “uma Coletânea de Filosofia da Biologia, envolvendo vários autores.” Eu já vinha oferecendo, há anos, a disciplina ‘filosofia da biologia’ desde que passei a ter uma lotação parcial no Instituto de Ciências Biológicas e sentia falta de uma bibliografia em português que pudesse servir de apoio para os estudantes. Tive, então, a ideia de fazer uma obra coletiva com a colaboração dos filósofos da biologia brasileiros e de outros países da América Latina, que faziam parte do chamado ‘Grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista’. Fui um dos fundadores do Grupo, que se reuniu pela primeira vez em 2006, na Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. O Grupo aderiu, prontamente, ao projeto e daí resultou a obra coletiva que foi publicada em 2011, com contribuições originais não somente dos membros do Grupo de Bogotá mas também de outros pesquisadores que convidei especialmente, de modo a que pudesse cobrir, da forma a mais ampla possível, os tópicos fundamentais que são hoje discutidos nessa área. Orgulho-me deste que foi o primeiro livro abrangente de filosofia da biologia publicado no Brasil (área que contava com uma produção escassa entre nós). Um nova edição dessa obra coletiva, no formato e-book e de acesso livre na rede, foi publicada em 2018. Ela pode ser baixada da presente página.

Este livro é, também, significativo pelo fato de eu ter nele publicado o primeiro artigo, em colaboração com Fábio Portela de Almeida, um ex-orientando, sobre a teoria da dupla herança de Richerson e Boyd, que era desconhecida no Brasil- a despeito do seu grande reconhecimento internacional enquanto uma das maiores contribuições para a compreensão da evolução humana e do papel que a cultura desempenhou nesse processo, como adiantei acima.

Publiquei vários outros artigos, e orientei trabalhos na graduação e na pós-graduação, que tiveram como pano de fundo a teoria da dupla herança. Merece destaque, justamente, a dissertação de mestrado do Fábio de Almeida, com o título ‘A evolução da mente normativa: origens darwinistas da cooperação humana’, que veio a ganhar o prêmio ANPOF de melhor dissertação em filosofia no ano de 2012.

Transições em individualidade

Godfrey-Smith exerceu grande influência sobre a minha pesquisa. Eu o conheci, pessoalmente, durante o pós-doutorado que fiz na RSSS da Universidade Nacional Australiana, e encontramo-nos também várias vezes nos congressos da International Society for History, Philosophy, and Social Studies of Biology (ISHPSSB).

Em 2009, ele publicou o livro Darwinian populations and natural selection e fui capturado pela sua leitura, embora tenha sido árdua, pois seu texto é muito denso.[25] Li o livro com toda a bagagem que possuía a respeito da teoria da dupla herança, que havia trabalhado minuciosamente nos anos anteriores. Esse livro estimulou-me, por sua vez, a estudar a literatura (já clássica) sobre transições em individualidade.

A leitura do capítulo 8, sobre ‘Evolução cultural’, sugeriu-me, de imediato, uma questão que iria ocupar-me por um bom tempo. Não me pareceu que este capítulo se encaixava, ou mesmo que fosse consistente, com o esquema conceitual que Godfrey-Smith desenvolvera nos capítulos anteriores. A meu ver, ele não deu um passo que me parecia uma decorrência natural do que vinha desenvolvendo no livro de 2009: investigar a hipótese de que o surgimento de grupos culturais humanos pode ter correspondido a uma transição em individualidade, como as outras que ocorreram na história da vida desde o seu surgimento na Terra.  Se essa reconstrução fosse plausível, promoveria uma sedutora unificação do nosso quadro de mundo!

Antes de entrar em mais detalhes a respeito de como enfrentei esse problema, gostaria de assinalar que tive vários encontros com Godfrey-Smith no Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard no final de 2009, onde passava parte do ano à época. Isso foi durante uma licença para capacitação que gozei. Após esses encontros, segui para Los Angeles para conhecer Richard Boyd, que integrava, à época, o Departamento de Antrolologia da UCLA. Pude, então, discutir detalhes da teoria da dupla herança, que constituíra o tópico central da pesquisa que eu desenvolvera no triênio 2007-2010, e que continuou sendo uma referência para a pesquisa que fiz posteriormente. Eu alinhavei algumas críticas à teoria, em especial ao que ele e Richerson denominam, no seu livro clássico de 2005, o “dilema adaptacionista”.[26]

Essa viagem me levou de um Departamento de Filosofia para um de Antropologia!  Esse trânsito é representativo daquele, de outra ordem, entre filosofia e ciência, que caracteriza muito do que fiz ao longo da minha carreira acadêmica. De encontros com um filósofo, Godfrey-Smith, passei a ter encontros com um biólogo e antropólogo, Richard Boyd. Lembro-me que na discussão que tive com cada um deles estiveram em pauta a importância do viés conformista na evolução humana e o papel da cultura nesse processo. Com Godfrey-Smith essa discussão se inseria em uma preocupação mais ampla com transições em individualidade, na busca de um quadro unificado de mundo; com Boyd questões conceituais e empíricas se relacionaram mais estreitamente (ele preparava-se para viajar com uma orientanda com o objetivo de fazer observações em uma comunidade de uma ilha do Pacífico). O peso relativo que têm problemas conceituais e problemas empíricos diz muito, a meu ver, a respeito do que distingue a pesquisa filosófica da pesquisa científica. Um naturalista defende, entretanto, que a diferença é somente de grau, e que esses dois tipos de problemas constrangem-se mutuamente, mesmo em filosofia.

Em 2011, apresentei no Colóquio Principia uma palestra em que abordei, pela primeira vez em público, a questão de se o surgimento de grupos culturais coesos e igualitários pode ser visto como uma transição em individualidade na linhagem hominínea. Esta palestra foi publicada na forma de um capítulo com o título ‘Culture and transitions in individuality’ (em Abrantes, 2011e). Eu o escrevi em inglês para poder, eventualmente, discuti-lo com colegas de outros países. No resumo do artigo, coloco as questões que me inquietavam:

“Some ‘major’ evolutionary transitions have been described as transitions in individuality. In this depiction, natural selection might bring about new kinds of individuals, whose evolutionary dynamics takes place in a novel way. Using a categorization proposed by Godfrey-Smith (2009), this transition is fully accomplished when a new ‘paradigmatic’ Darwinian population emerges. In this paper I investigate whether, at some point in the evolution in the hominin lineage, a transition of this kind might have happened by assuming some of the theses of dual inheritance theory, especially about the role played by a conformist bias. I argue that Godfrey-Smith misses, in his book, a scenario in which conformism is one of the preconditions for a transition towards a Darwinian population of cultural groups.”[27]

Entro agora em mais detalhes sobre como tratei essa questão.

Godfrey-Smith propôs, em seu livro, uma representação de diferentes tipos de ‘populações darwinianas’ usando várias dimensões (parâmetros) em um hiperespaço, que permitem não só distinguir populações ‘paradigmáticas’ de populações ‘marginais’ mas também trajetórias que levam de uma população a outra. Transições em individualidade podem, nessa descrição, ser representadas por trajetórias ligando um tipo de população paradigmática a outro tipo.[28]

Minha questão pode, portanto, ser colocada nos seguintes termos: haveria uma trajetória ligando uma população paradigmática de agentes culturais a uma (meta-)população paradigmática de grupos culturais? Essa questão vincula-se, diretamente, ao tópico que vinha pesquisando, sobre as condições nas quais evoluiu a colaboração em grandes grupos humanos, com seus pré-requisitos cognitivos.

A hipótese que passei a articular foi a seguinte: essa evolução poderia, em princípio, corresponder a uma trajetória na qual os membros dos grupos humanos tornam-se uma população darwiniana marginal (com valores baixos para parâmetros como o que quantifica a variação entre eles) e, simultaneamente, emerge uma (meta-)população darwiniana paradigmática de grupos culturais coesos e com grande variação fenotípica (cultural, no caso) entre eles. Como disse anteriormente, Godfrey-Smith não explora isso no capítulo 8 do seu livro de 2009, embora os capítulos anteriores abrissem, a meu ver, essa possibilidade.

Não conseguiria expor melhor a minha hipótese de trabalho do que no artigo, já referido, que publiquei na Revista Aurora. Permito-me citá-lo longamente:

“… quando o comportamento de um agente num grupo é marcado pelo conformismo, ele promove a cooperação e abstém-se de subvertê-la, abrindo mão de ganhos imediatos na sua aptidão para favorecer a aptidão do grupo como um todo. Essa análise é um forte indício, a meu ver, de que [uma população de grupos culturais] pode constituir uma população paradigmática, resultado de uma transição em individualidade. Não basta descrevê-la dessa forma, e situá-la no hiperespaço: é preciso investigar, também, os processos causais que poderiam ter sido responsáveis por essa transição, tópico a que estou me dedicando no momento. Vimos que teorias como a proposta por Richerson e Boyd destacam a evolução, nessa linhagem, de uma nova modalidade de herança e pressupõem que a seleção no nível dos grupos culturais humanos é suficientemente forte e fator irredutível na emergência da cooperação em larga escala.”

A questão da herança cultural e das condições para que a seleção ocorra no nível dos grupos culturais é, portanto, crucial para articular essa hipótese. Foram esses tópicos que viria a aprofundar no artigo que publiquei, em 2013, no periódico espanhol Contrastes.

Desenvolvi um pouco mais essas idéias durante o meu estágio sênior no Institut d’Histoire et de Philosophie des Sciences et des Techniques (IHPST) em Paris, entre agosto de 2012 e fevereiro de 2013. Lá pude trabalhar as hipóteses lançadas em Abrantes (2011e), que adquiriram uma feição mais madura no artigo supracitado de Contrastes (Abrantes, 2013a). Escrevi este artigo em inglês para ser apresentado no congresso que fundou a Associação Ibero-Americana de Filosofia da Biologia (AIFBI) em Valencia, Espanha. Eu estava, no período, fazendo o estágio sênior no IHPST.

Nesse artigo, contextualizo o livro de Godfrey-Smith de 2009 na literatura sobre transições em individualidade, e pressuponho a exposição que havia feito em Abrantes (2011e) da representação multi-dimensional que ele propõe para tipos de populações darwinianas.

Godfrey-Smith argumenta que não há uma noção clara de reprodução que se aplique a grupos culturais e que, portanto, estes não podem ser considerados indivíduos em um sentido biológico-evolutivo do termo. Eu volto a explicitar, como fizera em 2011, que isso me envolve com uma temática propriamente metafísica:

“I should emphasize straight away that I am not here concerned with a methodological project, namely, that of appraising how fruitful might be the application of biological models to explain cultural dynamics. I am pursuing, rather, a program in the philosophy of nature: how do humans, and culture specifically, fit into our picture of other well-known [transitions in individuality]?”[29]

No artigo-síntese que escrevi para o número especial sobre filosofia da biologia da Revista Aurora (Abrantes, 2013b) ressalto, também, as implicações metafísicas desse trabalho: “Em que medida, [a noção de indivíduo] pode aplicar-se, de modo apropriado e fértil, a grupos culturais?”. Retomei isso, mais recentemente, em Abrantes (2018a).

Em outra publicação (Abrantes, 2013a) faço menção a um artigo posterior de Godfrey-Smith, datado de 2012, onde o filósofo australiano mantém-se avesso a enveredar por essa via metafísica (a despeito de ser autorizada por seu livro de 2009, como já indiquei, e essa via ser empreendida por autores que ele mesmo cita em seu artigo).[30]

Voltando ao argumento central do meu artigo em Contrastes, a teoria sobre a evolução humana proposta por Richerson e Boyd pressupõe que a seleção no nível do grupo teve um papel indispensável nesse processo. A emergência de um novo sistema de herança, a herança cultural, atuando em paralelo com a herança genética, permitiu que a seleção nesse nível tivesse intensidade suficiente para afetar o processo evolutivo (há consenso entre os biólogos que isso não se dá em outras espécies).

Nesse artigo envolvi-me com o problema conceitual de distinguir diferentes tipos de seleção em múltiplos níveis, que vem sendo enfrentado por filósofos da biologia.[31] Essa discussão requer que se articule um conceito de reprodução que possa ser aplicado em cada um dos níveis de seleção. Godfrey-Smith impõe critérios mais rígidos que os adotados por Richerson e Boyd para que se possa afirmar que um determinado indivíduo se reproduz. A aplicação desses critérios torna insustentável cogitar que grupos culturais ‘reproduzem-se’, eliminando a possibilidade de que a seleção atue no nível desses grupos. Na minha interpretação, este foi o motivo pelo qual Godfrey-Smith não considerou, sequer, a possibilidade de que grupos culturais componham uma (meta-)população darwiniana paradigmática. Isso o impede, consequentemente, de vislumbrar uma (possível) transição em individualidade que pudesse ter ocorrido na linhagem hominínea. Para sustentar essa interpretação, cito no artigo de 2013 um trecho do livro de Godfrey-Smith que me parece significativo:

“In this book I treat Darwinian processes involving growth and persistence without reproduction as marginal cases (…) So ‘cultural group selection’ of a significant kind requires differential reproduction, not just differential persistence, even though the border between these is vague”.[32]

Ele não deixa dúvidas a respeito das condições que considera necessárias para que a seleção atue no nível de uma população darwiniana de grupos: “…estes têm que variar, reproduzir-se e herdar características de outros grupos” (2009, p. 118-9).

Por algum tempo impus-me a tarefa de conceber modalidades de reprodução (e de aptidão biológica) que pudessem ser atribuídas a grupos culturais humanos, e especulei sobre o papel que a seleção de grupo (em suas diversas modalidades) pudesse ter desempenhado numa possível transição em individualidade, e que teria redundado na emergência de grupos culturais coesos com propriedades (ontológicas, portanto) de indivíduos biológicos.

Apresentei minhas conjecturas a respeito em palestras (particularmente, na que dei no IHPST durante o meu estágio sênior, mencionado acima), e as discuto, sistematicamente, no artigo supra-citado de 2013. Essa é uma investigação que está em aberto, e que requer trabalho árduo, ao mesmo tempo de natureza conceitual e empírica. Com respeito à dimensão empírica, para se poder avançar nesse caminho é preciso dispor de informações sobre demografia e migração de grupos humanos, bem como sobre sua interação (se conflituosa ou não, por exemplo) durante o Pleistoceno. Dados a esse respeito são, reconhecidamente, difíceis de obter e sempre poderão ser contestados, sobretudo em se tratando de um período tão remoto no tempo.

Cooperação e conflito na linhagem hominínea

Nas conclusões do artigo Abrantes (2013a) aponto para diferentes cenários com respeito ao tipo de interação que os grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno podem ter tido entre eles. Richerson e Boyd apostam em um cenário conflituoso, enquanto Sterelny aposta em um outro, que pressupõe, ao contrário, que aqueles grupos de hominíneos colaboraram ao longo do Pleistoceno com bastante frequência. Esforcei-me no sentido de confrontar esses cenários, entre outros, e de explicitar os seus pressupostos. Faço breve menção a esse tópico no projeto de pesquisa que apresentei ao CNPq em 2010: 

“De modo análogo ao papel indispensável da competição no processo de seleção natural como concebido por Darwin, e atuando no nível do indivíduo, a seleção no nível do grupo depende da existência de competição que, no caso extremo, pode manifestar-se na guerra entre grupos. A competição atua como limitador na sobrevivência dos grupos humanos ou na manutenção da sua integridade cultural.”

No projeto de pesquisa que submeti ao CNPq em 2014, esse tópico, e os vários cenários para a evolução humana que ele engendra, ganham destaque já na Introdução:

“Num desses cenários, a seleção no nível do grupo é considerada um fator crucial para que a cooperação tenha evoluído e se estabilizado nos grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno. Os defensores do outro cenário apostam que basta a seleção em níveis inferiores ao do grupo para explicar a evolução da cooperação, o que é menos controverso diante da resistência, sobretudo dos biólogos, em admitir que a seleção em níveis mais altos que o do organismo individual tenha intensidade suficiente para ser contabilizada (…). No centro do atual projeto de pesquisa está a discussão, clássica em filosofia da biologia, em torno dos níveis de seleção. Ela se insere num programa que se propõe a ampliar os recursos conceituais da teoria da evolução no sentido de lidar com o papel que a cultura desempenha, de modo especial, na evolução humana.”

Comparo os cenários desenhados por Richerson e Boyd, de um lado, e Sterelny, de outro, em um artigo com o título ‘Conflito e cooperação na evolução humana’,  que integra um número especial que organizei sobre Evolução Humana a convite do editor do periódico Ciência & Ambiente, e que foi publicado em 2014. Os artigos desse número estão disponíveis na minha página na rede e podem ser baixados livremente.

Permito-me citar o resumo desse meu capítulo, com o intuito de mostrar a continuidade com a pesquisa que segui desenvolvendo:

“A cooperação no caso humano dá-se em larga escala, e os mecanismos da seleção de parentesco e do altruísmo recíproco revelam-se insuficientes para explicá-la. Uma outra explicação postula uma segunda modalidade de herança, a cultural, ao lado da herança genética. A cooperação humana estaria assentada, nesse cenário, num intrincado processo de coevolução gene-cultura em que grupos que adotaram normas e instituições que favoreciam a cooperação tiveram maior aptidão, em nosso passado evolutivo, do que grupos nos quais as variantes culturais não inibiam comportamentos egoístas. A seleção no nível do grupo é vista como central- uma solução para a qual Darwin já havia acenado-, e o conflito entre grupos é um requisito para que tenha intensidade. O artigo discute um cenário alternativo em que a cooperação entre grupos teria sido muito mais frequente no Pleistoceno do que é admitido no primeiro; a psicologia pró-social teria evoluído na linhagem hominínea antes mesmo do surgimento do homem anatomicamente moderno e por uma seleção atuando no nível do indivíduo.”

Apresentei uma versão preliminar desse texto no Congresso da Sociedade Interamericana de Filosofia que ocorreu em Salvador em 2013- numa seção dedicada à filosofia da biologia-, e também no IX Encontro da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), que ocorreu em Córdoba, Argentina, em 2014.

Foi desafiador levar a cabo o número especial de Ciência & Ambiente, que acabo de referir, sobretudo porque não concebo que se possa abordar a evolução humana, em toda a sua complexidade e nas suas mais diversas dimensões, sem contar com especialistas das mais diversas áreas- num espectro que vai da filosofia à biologia e outras ciências naturais, passando pelas ciências sociais e pela psicologia. Comecei por fazer um levantamento dos especialistas que trabalham no Brasil em antropologia, biologia, psicologia, filosofia, história e direito, para citar somente as grandes áreas representadas na obra. Em seguida, os convenci da importância do empreendimento, que é incomum e, ao meu conhecimento, foi inédito em nosso país. O fato de um filósofo estar à testa do mesmo talvez tenha surpreendido muitos dos colaboradores (que sequer me conheciam pessoalmente)!

Convidei também especialistas de outros países para tratarem de temas específicos, que não poderiam ser deixados de fora sem comprometer a abrangência temática que eu concebera para a coletânea. Um deles é a evolução da linguagem, abordado por Telmo Pievani. Resultou, desse esforço de mais de um ano, uma obra com 20 capítulos e mais de 300 páginas, que superou em muito as minhas expectativas.

Acredito que essa publicação apresenta uma visão acurada do estado da arte, ao aproximar áreas que, no Brasil sobretudo, abordam o tema da evolução humana de forma estanque, e com um foco demasiadamente restrito. Na Apresentação geral que fiz para o número especial afirmo que essa é uma “missão própria da filosofia: a de integrar abordagens e estabelecer conexões entre diferentes áreas do conhecimento, contrapondo-se à sua fragmentação e a visões por demais estreitas da realidade.”

Escrevi, também, uma Introdução para esse número com o título ‘Natureza e Cultura’. Nela defendo que a dicotomia natureza(humana)/cultura é um dos principais obstáculos para que especialistas dos campos das ciências humanas e das ciências naturais somem esforços no sentido de compreender os fenômenos complexos associados à evolução humana, o que me parece indispensável. Para questionar essa dicotomia precisei fazer um trabalho conceitual prévio em torno das noções de ‘natureza’ e de ‘cultura’. Este último conceito ocupa-me, sobremaneira, nessa Introdução, embora faça algumas considerações sobre a (controversa) noção de ‘natureza humana’. 

Após um rápido histórico sobre as origens dessa dicotomia, desenvolvo uma crítica a ela com base não somente na teoria da dupla herança- que defende, abertamente, a sua superação- e em ideias menos ortodoxas de antropólogos como Tim Ingold, que vão no mesmo sentido. Também apoio-me em discussões filosóficas a respeito dos fundamentos da biologia evolutiva. Argumento que várias tentativas que estão sendo feitas, atualmente, para estender os recursos explicativos da teoria da evolução que emergiu da grande síntese da primeira metade do século passado- em especial as que pregam que desenvolvimento e evolução são processos que não podem ser dissociados-, também conduzem ao questionamento da dicotomia natureza/cultura. Com esta Introdução, pretendi sublinhar o pano de fundo filosófico das discussões levadas a cabo nesse número especial de Ciência & Ambiente.

Registro, nesse ponto do Memorial, que a dicotomia natureza/cultura foi tema da minha aula inaugural no Departamento de Filosofia da UnB em 2017.

Espero ter aberto espaço, como filósofo, para um diálogo entre áreas do conhecimento que, usualmente, não interagem (quando não se repelem mutualmente). Considero que favorecer esse intercâmbio seja uma das contribuições que a filosofia pode dar em um mundo acadêmico cada vez mais compartimentado, a despeito das declarações, de modo geral puramente retóricas, a favor da ‘interdisciplinaridade’.

O artigo ‘Natureza e Cultura’ instigou-me a tentar compreender como a área da antropologia cindiu-se internamente, entre aqueles que trabalham na perspectiva de uma antropologia cultural (ou social) e aqueles que se dedicam a uma antropologia biológica (antigamente denominada ‘antropologia física’).

Ao ser convidado para participar do IV Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Etnologia e Etno-história, que ocorreu em Dourados, Mato Grosso do Sul, em 2017, aproveitei a oportunidade para comunicar os primeiros resultados dessa investigação.

Sistematizei essas idéias em um artigo publicado em 2020, que enfatiza as controvérsias que alimentam cisões como a que se manifesta em antropologia: Human evolution: a role for culture?

Nesse artigo, indico que o programa em biologia conhecido como ‘evo-devo’- que busca aproximar os processos de desenvolvimento dos organismos (ontogenéticos) e de evolução das populações (filogenéticos)-, bem como a proposta, com um caráter nitidamente filosófico, de uma ‘teoria de sistemas de desenvolvimento’, levam a uma contestação radical da dicotomia natureza/cultura. Mostro ainda que antropólogos como Tim Ingold estão se apoiando nesses debates contemporâneos sobre os fundamentos da biologia para propor uma reaproximação das grandes áreas em que a antropologia é, tradicionalmente, dividida.

Não perdi as oportunidades que se ofereceram para buscar uma aproximação entre a filosofia e as ciências sociais, de um lado, e a psicologia e a biologia, de outro. Isso é ainda mais relevante quando a compreensão de processos complexos, como a evolução humana, requer a convergência de esforços, assim como a complementaridade de enfoques e competências.

A título de exemplo, menciono, brevemente, algumas participações mais recentes, além das já referidas ao longo da trajetória narrada, até aqui, neste Memorial.

Aceitei um convite para fazer a apresentação do livro do saudoso Prof. Paulo Saraiva, que foi um pesquisador em neurofisiologia do Instituto de Ciências Biológicas da UnB, com o título Cérebro, evolução e linguagem. Esse autor aborda no seu livro, publicado postumamente em 2014, vários assuntos a que me apliquei, como o do papel da cultura na evolução humana bem como suas bases cognitivas, como a capacidade para a leitura de mentes (mindreading). Foi um desafio e uma grande satisfação poder debruçar-me sobre o trabalho, de fôlego, realizado por Paulo Saraiva a respeito de tópicos de grande complexidade, como o da evolução da linguagem. Este é um assunto que sempre me intrigou, mas também me intimidou, e gostaria de ter energia e tempo para poder encará-lo, além das referências que fiz a ele em alguns trabalhos, alguns não publicados, e também neste Memorial.[33]

Quero também mencionar um trabalho em torno do tema da cooperação e do conflito na evolução humana que realizei com a bióloga colombiana Catherine Bernal, que fez uma visita à UnB quando ainda desenvolvia a sua pesquisa de doutoramento na Universidade do México. A Catherine é hoje uma professora da Universidade Nacional Colombiana, em Bogotá. Publicamos um artigo (2018b), e um outro com um caráter mais historiográfico em 2020, no qual investigamos como diferentes ‘imagens de homem’ permearam, e ainda permeiam, as controvérsias em torno do papel que a luta pela existência darwiniana (struggle for existence) teve na linhagem hominínea, ao lado do lugar- inequívoco e distintivo, ao mesmo tempo que paradoxal, no contexto de um processo evolutivo-, que a cooperação em larga escala ocupa nos grupos humanos.

Uma cisão na Antropologia

O artigo ‘Natureza e Cultura’ instigou-me a tentar compreender como a área da Antropologia cindiu-se internamente, entre aqueles que trabalham na perspectiva de uma antropologia cultural (ou social) e aqueles que se dedicam a uma antropologia biológica (antigamente denominada ‘antropologia física’).

Ao ser convidado para participar do IV Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Etnologia e Etno-história, que ocorreu em Dourados, Mato Grosso do Sul, em 2017, aproveitei a oportunidade para comunicar os primeiros resultados dessa investigação.

Sistematizei essas idéias em um artigo publicado em 2020, que enfatiza as controvérsias que alimentam cisões como a que se manifesta em antropologia: Human evolution: a role for culture?

Nesse artigo, indico que o programa em biologia conhecido como ‘evo-devo’- que busca aproximar os processos de desenvolvimento dos organismos (ontogenéticos) e de evolução das populações (filogenéticos)-, bem como a proposta, com um caráter nitidamente filosófico, de uma ‘teoria de sistemas de desenvolvimento’, levam a uma contestação radical da dicotomia natureza/cultura. Mostro ainda que antropólogos como Tim Ingold estão se apoiando nesses debates contemporâneos sobre os fundamentos da biologia para propor uma reaproximação das grandes áreas em que a antropologia é, tradicionalmente, dividida.

Não perdi as oportunidades que se ofereceram para buscar uma aproximação entre a filosofia e as ciências sociais, de um lado, e a psicologia e a biologia, de outro. Isso é ainda mais relevante quando a compreensão de processos complexos, como a evolução humana, requer a convergência de esforços, assim como a complementaridade de enfoques e competências.

A título de exemplo, menciono, brevemente, algumas participações mais recentes, além das já referidas ao longo da trajetória narrada, até aqui, neste Memorial.

Aceitei um convite para fazer a apresentação do livro do saudoso Prof. Paulo Saraiva, que foi um pesquisador em neurofisiologia do Instituto de Ciências Biológicas da UnB, com o título Cérebro, evolução e linguagem. Esse autor aborda no seu livro, publicado postumamente em 2014, vários assuntos a que me apliquei, como o do papel da cultura na evolução humana bem como suas bases cognitivas, como a capacidade para a leitura de mentes (mindreading). Foi um desafio e uma grande satisfação poder debruçar-me sobre o trabalho, de fôlego, realizado por Paulo Saraiva a respeito de tópicos de grande complexidade, como o da evolução da linguagem. Este é um assunto que sempre me intrigou, mas também me intimidou, e gostaria de ter energia e tempo para poder encará-lo, além das referências que fiz a ele em alguns trabalhos, alguns não publicados, e também neste Memorial.[33]

Quero também mencionar um trabalho em torno do tema da cooperação e do conflito na evolução humana que realizei com a bióloga colombiana Catherine Bernal, que fez uma visita à UnB quando ainda desenvolvia a sua pesquisa de doutoramento na Universidade do México. A Catherine é hoje uma professora da Universidade Nacional Colombiana, em Bogotá. Publicamos um artigo (2018b), e um outro com um caráter mais historiográfico em 2020, no qual investigamos como diferentes ‘imagens de homem’ permearam, e ainda permeiam, as controvérsias em torno do papel que a luta pela existência darwiniana (struggle for existence) teve na linhagem hominínea, ao lado do lugar- inequívoco e distintivo, ao mesmo tempo que paradoxal, no contexto de um processo evolutivo-, que a cooperação em larga escala ocupa nos grupos humanos.

Atividades de pesquisa recentes

Filosofia e Biologia

No artigo Filosofia e Biologia: incursões (2020) analiso, com o foco particular na biologia, as várias modalidades com que podem dar-se as relações entre filosofia e ciência. Indico que o modo como o trabalho do filósofo da ciência é normalmente visto- como o de desenvolver um discurso de segunda ordem a respeito da(s) ciência(s), em particular investigando os problemas conceituais colocados por estas últimas-, é somente uma dessas modalidades. Sugiro, inclusive, que a filosofia pode aspirar a ter um maior protagonismo nas suas relações com o conhecimento produzido pelos biólogos e ilustro como ele pode dar-se no campo da biologia.  

Coletânea reunindo trabalhos apresentados em evento

Em 2017, pela iniciativa generosa de alguns colegas do Departamento de Filosofia da UnB foi organizado um evento em minha homenagem com a participação de pesquisadores que muito prezo e com os quais tive o privilégio de trabalhar em diferentes oportunidades. Dei ao evento o título: “O homem e seus mundos: perspectivas filosóficas e científicas”. Quis, com esse título, colocar em relevo a distinção entre um ‘mundo interno’ (da mente; da experiência, etc.) e um ‘mundo externo’ (físico/biológico, social, cultural/simbólico, etc.), bem como discutir a tese que alguns aspectos desses mundos pudessem ser, exclusiva ou caracteristicamente, humanos.

Em 2018, foi publicado um número da Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea reunindo as palestras dadas no referido evento. Escrevi para esse número o artigo ‘Uma mente embebida na cultura’ em que pretendo sintetizar as pesquisas que vinha fazendo nos anos precedentes (mais informações sobre o evento e esta publicação podem ser obtidas nesta minha página pessoal, em ‘Eventos’). Este artigo complementará, sem dúvida, a tentativa de síntese que empreendo aqui.

Peço ao leitor que me seguiu até este ponto uma dose adicional de benevolência para que eu possa citar um trecho da Conclusão desse artigo, que indica algumas das teses que me são caras e que compareceram em diferentes contextos deste Memorial:

“Espero ter devidamente qualificado em que sentido o mundo da cultura é um mundo especificamente humano, não somente no sentido de moldar cada um de nós no curto tempo ontogenético da nossa existência- que se desenrola nos nichos construídos no tempo histórico de nações e civilizações, uma tese bastante evidente e consensual-, mas que a condição humana foi moldada pela cultura no tempo histórico profundo da filogenia do Homo sapiens e de outras espécies hominíneas com as quais compartilhamos ancestrais comuns, perpassando dezenas de milhares de gerações. De modo menos ortodoxo, pode-se dizer que a evolução da espécie humana desenrola-se num único tempo histórico, que engloba o desenvolvimento de cada um de nós e a dinâmica das populações, numa sinergia permanente envolvendo processos que vão dos genes aos grupos passando pelos indivíduos, e que se retroalimentam. Esses processos embricados ocorrem em vários níveis ontológicos simultaneamente, que distinguimos para poder compreendê-los com a finitude das nossas mentes (que são produtos desses mesmos processos!), e para os submeter aos procedimentos analíticos da filosofia e das ciências, na esperança de gerar algum conhecimento a esse respeito, para além da estupefação e do maravilhamento de que nos falou, alguma vez, Aristóteles. Para tanto, partimos de imagens de natureza humana enraizadas na nossa experiência ordinária, ainda que incertas e pouco nítidas, e por vezes conseguimos melhor precisá-las e, eventualmente, revê-las gerando conhecimento comum e conhecimento científico, que se nutrem mutualmente.”

Para mais informações, ir para a página Eventos.

Evolução Cultural

O processo de evolução dos seres vivos por seleção natural pode servir de modelo para explicar outros processos, por vezes muito distantes da biologia. Na minha pesquisa mostrei como isso pode ocorrer, por exemplo, em epistemologia, com as chamadas epistemologias evolucionistas.

Em 2021 submeti um artigo sobre como essa extrapolação pode ser frutífera também para abordar a dinâmica cultural. Ressalto que o tópico da evolução cultural não deve ser confundido, entretanto, com o da evolução da cultura e, tampouco, com o da coevolução gene-cultura, a que me dediquei em outros artigos.

Quero concluir esse Memorial apontando para algumas tendências gerais, e temas unificadores, na pesquisa que apresentei até aqui.

Uma Síntese

Em mais de trinta anos de carreira dei vazão a uma ampla gama de interesses que me levaram a trabalhar em diferentes áreas da filosofia: a filosofia da ciência (e, mais recentemente, a filosofia da biologia), a teoria do conhecimento e a filosofia da mente. A essa pesquisa acrescento a que fiz como historiador da ciência e que, como tentei mostrar neste Memorial, sempre esteve em diálogo com o meu trabalho em filosofia da ciência. Nesse diálogo, percebo a continuidade do meu interesse pela descoberta científica e pela metodologia- particularmente pela modelagem analógica e pela simulação nas ciências.

O leitor dessas linhas pode entender que, ao longo dessa trajetória, a ciência foi um objeto privilegiado de reflexão filosófica. Do meu ponto de vista, isso não seria totalmente acurado, contudo, pois a ciência não foi somente um objeto de reflexão: o conhecimento produzido em diversas ciências participou, de forma intrínseca, da reflexão que desenvolvi sobre diversos tópicos, o que reflete uma postura metafilosófica naturalista.[34] Percebo o naturalismo, retrospectivamente, como um dos elementos integradores, de caráter metafilosófico, do meu trabalho como filósofo. Entendo que uma orientação naturalista traduz-se, minimamente, por uma abertura para o conhecimento científico (em diversas áreas), na medida da sua relevância para o encaminhamento, e a possível solução, dos problemas filosóficos em tela.

A questão da inserção do mental no mundo físico é uma das que privilegiei ao longo desse percurso, e o modo como a abordei, em certas fases da minha pesquisa, reflete uma postura naturalista. Ao mesmo tempo que lidei com esse tópico de um modo tradicional- como o problema mente-corpo é, usualmente, tratado em filosofia da mente-, o fiz enquadrando este problema no âmbito da evolução humana, tomando de empréstimo instrumentos conceituais da biologia e das ciências cognitivas.

Contudo, seria um grande equívoco, como alertei em várias publicações, confundir o naturalismo com o cientificismo, que retira da filosofia sua agenda própria ou lhe negue autonomia no cumprimento dessa agenda. Avalio que, nesse trabalho de pesquisa, a filosofia desempenha, frequentemente, um papel integrador, aproximando não somente diferentes áreas da investigação científica mas também garantindo espaço para concepções de senso comum- no caso específico, a respeito do que seria característico da mente humana e, de modo mais amplo, do lugar que ocupamos na Natureza, de modo a compor um quadro unificado de mundo.

Isso pode ser ilustrado pela minha pesquisa recente sobre evolução humana, em que a perspectiva ordinária a respeito do que seria característico da condição humana, e da nossa inserção no mundo animal, é respeitada e incorporada no modo como a filosofia e as ciências sociais afirmam o lugar sui generis que ocupamos na Natureza. Isso não impede que se perca de vista o objetivo de compor um quadro unificado de mundo, o que requer a incorporação das perspectivas adotadas pela biologia e pela psicologia, entre outras ciências naturais.

As ressonâncias desta última passagem, e de outras neste Memorial, com temas em filosofia da natureza que remontam às origens da filosofia ocidental me permitem chamar a atenção para um outro fio condutor da minha pesquisa, que foi se tornando evidente à medida que fui elaborando a presente reconstrução da minha trajetória intelectual.

Visto retrospectivamente, o meu envolvimento com a filosofia da natureza já se encontrava presente nos meus trabalhos em história da ciência do início da minha carreira, onde dei ênfase às imagens de natureza que condicionam o trabalho dos cientistas. Essas imagens desempenham um papel semelhante ao de alguns dos elementos de uma matriz disciplinar, como descritos por Kuhn, ou mesmo ao da metafísica nos programas de pesquisa de Lakatos. Nesse sentido, o meu interesse pela filosofia da natureza já estava latente naquelas pesquisas. Um exemplo disso são os estudos que fiz sobre o teísmo de Newton, em contraste com o deísmo de um Descartes. No foco desta controvérsia estava a questão, mais fundamental, da relação entre mente (espírito) e corpo (natureza), como apontei anteriormente neste Memorial e discuti, aprofundadamente, no capítulo 4 do meu livro Imagens de Natureza, Imagens de Ciência.

Acredito que o meu interesse por essas controvérsias, no âmbito da filosofia da natureza, antecipam o meu engajamento explícito, tempos depois e em um nível mais elevado de abstração, com discussões de metafísica propriamente dita. Isso deu-se nos meus estudos do problema mente-corpo e, mais recentemente, embora de modo marginal, na importância que adquiriu a noção de indivíduo (biológico) nas pesquisas que empreendi sobre transições em individualidade na evolução dos seres vivos. Efetivamente, fiz acima menção explícita à filosofia da natureza quando comentei o artigo publicado, em 2013, no periódico Contrastes.

Notas

[1] Eu viria a forjar esse conceito anos depois, escrevendo o meu livro publicado em 1998.

[2] Por exemplo, eu detectava, à época, um indutivismo ingênuo na montagem de experimentos no laboratório e no uso que era feito de seus resultados em sala de aula, em relação com a construção e o teste de hipóteses e teorias.

[3] Lembro-me que fiz um trabalho final, no primeiro curso, sobre o modo como A. Comte concebia a história das ciências.

[4] Um dos livros cuja leitura havia apreciado muito quando estava fazendo a minha dissertação de DEA foi o da física e historiadora Marie A.  Tonnelat, Histoire des théories de l’éther. Ela aceitou, à época,
o meu pedido para ser minha orientadora no doutorado, mas infelizmente faleceu pouco tempo depois. Tive que escolher um outro orientador no Institut d’Histoire des Sciences et des Téchniques, vinculado ao Departamento de Filosofia (U.E.R. de Philosophie) da Sorbonne (Universidade de Paris
I), a filósofa Suzanne Bachelard.

[5] A noção de themata de G. Holton- que eu havia lido por seus relevantes estudos sobre a história da teoria da relatividade- em especial Thematic analysis of scientific thought e Scientific Imagination– provavelmente antecipou aspectos do que eu hoje entendo por imagem de ciência e por imagem de natureza, conceitos que viria a articular posteriormente. Eu já conhecia Holton pelo seu envolvimento em projetos pedagógicos, como o chamado ‘projeto Harvard’, visando a aplicação da história da ciência ao ensino de ciência. 

[6] Doravante abreviarei este título para Imagens.

[7] A primeira edição de Imagens se restringia a estudos em história da física, da astronomia e da cosmologia de modo geral.

[8] Posteriormente, explorei mais o historicismo e incorporei minhas reflexões a respeito do naturalismo em filosofia da ciência (sobretudo as concepções defendidas por Laudan e Rosenberg) no livro Método e
Ciência: uma abordagem filosófica
, publicado em 2013, do qual falarei mais
adiante.

[9] Nesse contexto, não posso deixar de mencionar outros três filósofos da ciência que, em diversos momentos e de diferentes modos, marcaram o meu trabalho: N. R. Hanson, R. Harré e S. Toulmin. Este último foi especialmente importante por suas tentativas de adotar uma abordagem explicitamente
evolucionista no tratamento de questões em epistemologia. Aprendi muito com Harré a respeito do uso de diferentes tipos de modelos em ciência. Hanson é uma referência fundamental para todos os que combinam trabalho filosófico e histórico a respeito da atividade científica e foi um precursor, nos anos 1950, das críticas à chamada ‘tradição herdada’ (received view) em filosofia da ciência, que se avolumaram na década seguinte.

[10] Infelizmente, a tradução para o Espanhol do artigo “Simulação e realidade” não me foi enviada para revisão prévia, como é de praxe, e o artigo foi publicado com muitos erros. Incorporei esse trabalho, com adaptações, no meu livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica.

[11] Esta publicação – que situo na mesma linhagem de artigos em filosofia (geral) da ciência que publiquei como resultado da minha pesquisa no Centro de Pittsburgh -, foi incorporada no capítulo 12 do meu livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica.

[12] Endereço: http://www.ephilosopher.com/010101/symposia/symposia.htm.
Página acessada em 21/05/2001.

[13] Pode-se defender que o problema mente-corpo, um problema fundamental em ontologia, seja o problema central dessa área. Os problemas epistemológico (o chamado problema das outras mentes) e o metodológico são relativamente secundários. No meu trabalho anterior em história da ciência, dei muita ênfase às imagens de natureza, que consistem em metafísicas assistemáticas que guiam o trabalho dos cientistas, de modo semelhante ao papel que desempenha a metafísica nos programas de pesquisa lakatosianos. Nesse sentido, o meu interesse por metafísica (ou, mais precisamente, por filosofia da natureza) já estava latente desde as minhas pesquisas em história da ciência.

[14] Assinalo, de passagem, que o FIL provavelmente foi o primeiro departamento de filosofia no Brasil a oferecer essa disciplina no nível de graduação.

[15] O tipo de relação que o meu trabalho estabelecerá com a biologia será distinto, contudo, do que tivera antes com as ciências cognitivas, como ficará claro adiante.

[16] Salvo indicação em contrário, os trechos entre aspas são retirados dos projetos de pesquisa que submeti ao CNPq.

[17] Não quero me deter aqui na distinção entre uma linguagem metafórica e uma linguagem literal, que não é tão nítida quanto parece à primeira vista. Discuto isso no meu artigo de 1999, e volto a mencionar esta distinção no cap. 13 do meu livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica.

[18] Quero frisar que o termo ‘evolução’ está sendo sempre empregado, neste Memorial, num sentido estritamente darwinista (ou selecionista), e nunca no sentido vulgar de um simples ‘desenvolvimento’, ou de uma dinâmica inespecífica. Marcos Toscano, como assinalei, construiu um modelo selecionista
abstrato e o instanciou na dinâmica tecnológica; uma modelagem semelhante pode ser tentada no tocante à(s) dinâmica(s) de outras dimensões da cultura.

[19] Há mais de um conceito de função empregado em biologia, o que complica as coisas, mas não entro aqui nesses detalhes, abordados por Karla Chediak (2018).

[20] Incorporei os resultados dessa investigação no cap. 13 do meu livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica, do qual tratarei adiante.

[21] Como adiantei acima, essa temática já fora objeto da dissertação do Marcos Toscano, defendida em 2009, embora ela estivesse restrita ao campo da evolução tecnológica.

[22] As explicações clássicas da evolução da cooperação (ou do comportamento altruísta), como a seleção de parentesco e o altruísmo recíproco, só requerem que a seleção atue em níveis inferiores ao do grupo: aqueles do organismo (ou agente) e do gene.

[23] A distinção entre possuir cultura e ser capaz de acumulá-la é fundamental para essa discussão, e a aprofundo em vários artigos, como ressalto no exercício retrospectivo que fiz em Abrantes (2018a).

[24] Eu viria a incorporar trechos desse artigo no capítulo 12 do livro Método e Ciência: uma abordagem filosófica, para ilustrar o uso de modelos matemáticos e de simulações nas ciências.

[25] O livro de Godfrey-Smith viria a ganhar o prêmio Lakatos em 2010. Eu não pretendia trabalhar sobre o tópico das transições no projeto que apresentei ao CNPq para o período 2010-13, pois o havia enviado a essa agência antes de iniciar a leitura do livro. Essa pesquisa está, contudo, registrada no projeto
que submeti em 2014.

[26] No artigo para a Revista Aurora exponho o “dilema” da seguinte forma: “… se as vantagens de uma cultura cumulativa são tão evidentes (pelo fato de promover uma adaptação mais rápida a uma grande
diversidade de ambientes), porque ela não evoluiu, até onde sabemos, em outras linhagens além da nossa…?”

[27] “Algumas ‘grandes’ transições evolutivas foram descritas como transições em individualidade. Nessa descrição, a seleção natural pode gerar novos tipos de indivíduos cuja dinâmica evolutiva tem lugar de um modo novo. Usando uma categorização proposta por Godfrey-Smith (2009), essa transição é
completamente realizada quando uma nova  população Darwiniana ‘paradigmática’ emerge. Neste artigo, eu investigo se em algum pondo da evolução na linhagem hominínea uma transição desse tipo poderia ter ocorrido, assumindo algumas das  teses da teoria da dupla herança, especialmente
sobre o papel desempenhado pelo viés conformista. Eu argumento que Godfrey-Smith não percebe em seu livro um cenário no qual o conformismo é uma das pré-condições para uma transição em direção a uma população Darwiniana de grupos culturais”.

[28] Para detalhes a respeito dessa representação, ver Abrantes (2011e; 2013a).

[29] “Eu devo enfatizar de imediato que não estou me importando, aqui, com um projeto metodológico, a saber, o de avaliar o quão frutífero pode ser a aplicação de modelos biológicos para explicar a dinâmica cultural. Eu estou perseguindo, em vez disso, um programa em filosofia da natureza: como humanos,
e a cultura especificamente, se encaixam em nosso quadro de outras transições em individualidade”.

[30] O foco de Godfrey-Smith em seu artigo de 2012 continua sendo não a evolução de grupos humanos, enquanto possíveis indivíduos, mas a dinâmica das variantes culturais.

[31] Okasha (2006) constitui uma obra de referência para a temática da seleção em múltiplos níveis.

[32] “Neste livro eu trato processos Darwinistas envolvendo crescimento e persistência sem reprodução como casos marginais (…) Portanto, a ‘seleção de grupos culturais’ de um tipo significativo requer reprodução diferencial, e não somente persistência diferencial, embora a fronteira entre esses seja vaga”.

[33] Em Abrantes (2018) aponto nessa direção. Recentemente arrisquei-me a apresentar uma comunicação com o título “Mind and culture in an evolutionary perspective” no congresso Protolang6, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em setembro de 2019, em que a evolução da linguagem esteve em pauta.

[34] Há casos também em que a ciência é usada para refletir sobre a própria ciência, ou seja, que é auto-aplicada, como ilustra o artigo que publiquei juntamente com Charbel El-Hani em 2009.

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(As minhas publicações estão listadas separadamente em Produções)

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